Transexuais: a reabolição da escravatura e o Ministério Público
Diaulas Costa Ribeiro
Promotor de Justiça Professor Universitário
Olha-te ao espelho e diz-me que rosto contemplas. Pois é tempo que dele outro rosto se forme. (Shakespeare)
Dentre as atribuições da Pró-Vida, inclui-se realizar a habilitação para transgenitalização, uma medida que visa assegurar à equipe médica a segurança jurídica necessária para que a “mudança de sexo” não seja confundida com lesão corporal grave.
A transexualidade é uma grave doença psíquica caracterizada pela convicção inabalável de se pertencer ao sexo oposto daquele cujas características físicas se possuem e por um forte desejo de correção cirúrgica conforme ao sexo a que se julga pertencer. Mais freqüente entre os biologicamente machos, nada tem a ver com a homossexualidade — uma alternativa de expressão sexual — nem com o transvestismo, nem com a intersexualidade, situação em que há ambigüidade por coexistência de características físicas de ambos os sexos.
Na transexualidade tudo reside na oposição entre sexo biológico e papel sexual, o que é grave porque a sociedade exige, sob pena de condenação e de marginalização, uma identidade entre ambos. Um transexual, simplificando, «é alguém que tem a convicção profunda e imutável de pertencer a um sexo que não é o seu. Sente que há por ali um dramático engano. Odeia violentamente as suas características sexuais, primárias (órgãos genitais externos e internos) e secundárias (desenvolvidas na puberdade). Faz o que pode para se desembaraçar delas e adquirir as do sexo que sente que lhe corresponde. Isto sem manifestar perturbações mentais associadas».
O conflito de identidade sexual, proveniente de ambigüidade morfológica ou de desencontro psíquico-somático, resolve-se argumentando com os textos legislativos — Lei Orgânica do Ministério Público da União, Código Civil, Código Penal, Lei da Ação Civil Pública, Lei de Biossegurança — tendo em primeiro lugar a Constituição Federal. Além desses textos, há de se invocar a Declaração Universal dos Direitos do Homem — artigos 6.º (reconhecimento da personalidade); 12 (respeito pela vida privada e familiar); 16 (direito de casar e de constituir família); 29, n.º 1 (pleno e livre desenvolvimento da personalidade); Convenção Americana sobre Direitos Humanos, artigos 11 (respeito pela vida privada e familiar); e 17 (direito de casar e de constituir família); o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos — artigos 16 (reconhecimento da personalidade); 23 (direito de casar e de fundar família).
Nesse sentido caminha a doutrina da defesa dos direitos fundamentais, consagrando a cirurgia de mudança de sexo em transexuais como o exercício de um direito fundamental à privacidade, ao direito de ter uma conformidade física que permita a orientação sexual que cada um pretende ter.
A intervenção do Ministério Público nesses casos tem, também, a finalidade de afastar o enorme preconceito religioso e moral que ainda classifica o transexual como um depravado perante Deus e os homens, o que não tem sustentação médica nem jurídica num estado laico em que a separação entre o Estado e as Igrejas é básica para que no exercício das funções que lhe são típicas, esse mesmo Estado assegure a cada indivíduo ou cidadão a liberdade religiosa, incluindo, aí, a garantia do direito de não ser submetido a decisões judiciais, ministeriais ou de qualquer outro agente político ou administrativo, embasadas em princípios religiosos, filosóficos ou ideológicos de quaisquer espécies.
Cumpridos os requisitos éticos e legais, não há obstáculo à redesignação sexual. E cada etapa cumprida, cada requisito preenchido, representa, nos dias atuais, a abolição da escravatura em que vivem esses pacientes. Esses escravos da era internética já não são quase todos pretos. Mas a escravidão ainda é a mesma e tem as mesmas táticas, as mesmas razões e a até a mesma irracionalidade. Era mesmo preciso aboli-la. Mas era inacreditável, há cinqüenta anos, que fosse o Ministério Público, o braço armado de ditadores e ditaduras, a levantar a bandeira de defesa da redesignação sexual. Talvez sejamos tão-somente a realidade de sonhos sonhados desde Zumbi dos Palmares a Martin Luther King. Sonhos simples: — Toda pessoa humana tem direito a ser feliz porque ser feliz é Legal! E Estar Legal é a razão de Ser do Ministério Público.
(Correio Braziliense, Cidades, 21 de Setembro de 2000, p. 21)
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