Homicídio durante o parto
RAZÕES DO RECURSO EM SENTIDO ESTRITO
Diaulas Costa Ribeiro
Promotor de Justiça Professor Universitário
PROMOTORIA DE JUSTIÇA CRIMINAL DE DEFESA DOS USUÁRIOS DOS SERVIÇOS DE SAÚDE
PRÓ – VIDA
RAZÕES DO RECURSO EM SENTIDO ESTRITO
Recorrente: Ministério Público
Recorrido: Juízo da 3.ª Vara Criminal de Brasília
Autos n.º 53.940-5/01
E. Procuradoria de Justiça,
E. Tribunal de Justiça,
1. Relatório
No dia 28 de Maio de 2001, o Ministério Público ofereceu a seguinte denúncia contra os médicos ... atribuindo-lhes a responsabilidade penal pela omissão profissional que produziu, durante o parto, a morte do filho de Hellen Cássia Ferreira da Costa:
«1. Causas. 1.1. No dia 5 de Setembro de 2000, Terça-feira, por volta de 1h40 (da madrugada), Hellen Cássia Ferreira da Costa, 16 anos de idade à época (nascida em 10 de Setembro de 1983), grávida pela primeira vez há 40 semanas, dirigiu-se ao Hospital Materno Infantil de Brasília (HmiB), com sinais de ruptura da bolsa amniótica, porém sem contrações.[1] A ficha de atendimento foi preenchida às 5h52 (da manhã); a internação só ocorreu às 8h15.[2] Com o diagnóstico confirmado de ruptura prematura da bolsa amniótica e trabalho de parto em curso, estando preservados os batimentos cardiofetais — o feto estava vivo até esse momento —, foi determinada a sua internação pelo primeiro denunciado, que, juntamente com os dois outros, eram os únicos médicos responsáveis pelo atendimento e assistência à paciente no turno das 7h00 às 13h00 daquele dia. Tinham por lei a obrigação de cuidado, proteção e vigilância para com ela.
1.2. Ocorreu que nenhum dos três denunciados prestou qualquer atendimento à paciente desde a sua internação. Apenas às 11h25, três horas e dez minutos após a sua admissão no HmiB, Hellen Cássia foi avaliada pelo terceiro denunciado, que não conseguiu detectar os batimentos cardiofetais. Às 11h40, Hellen foi examinada pela segunda denunciada, que confirmou a suspeita de morte fetal e indicou a indução medicamentosa do parto.
1.3. Às 15h50 a paciente expulsou um natimorto do sexo masculino; recebeu alta hospitalar no dia 6 de Setembro, às 10h30, em bom estado geral.
2. Responsabilidade penal. 2.1. Entre as 8h15 e 11h25, Hellen Cássia não foi examinada, não foi monitorada, não foi assistida; muito menos o seu filho. Em três horas e dez minutos de permanência em ambiente hospitalar sob a responsabilidade dos três acusados, nenhum deles dispensou à paciente sequer um toque. As evoluções, que eram devidas por eles a cada 30 minutos, ocorrem uma única vez, e como antes afirmado, três horas e dez minutos após a sua internação. Durante esse período, os denunciados se «esqueceram que a paciente estava em trabalho de parto», deixando de examiná-la, bem como o feto.
2.2. O trabalho de parto compreende um risco permanente para o feto. Daí a necessidade de se avaliar suas condições antes e durante todo o seu transcurso. Mas os denunciados, por negligência, por omissão, ultrapassaram todos os limites dos riscos permitidos no trabalho de parto, não examinando a paciente, que havia procurado o Hospital ainda na madrugada. Como não examinaram-na, não trataram do feto; como não cuidaram da mãe, não cuidaram do filho; como não protegeram a mãe, não deram à luz o filho; como não vigiaram a evolução do parto, não constataram o sofrimento fetal. Como não fizeram nada pela vida, deixaram que o feto morresse por anóxia intra-uterina, asfixiado pela própria vontade de nascer.
2.3. Com essas omissões, criaram o risco de produzir o resultado morte, sem, contudo, assumi-lo. Sem essas omissões o resultado não teria ocorrido. Se os denunciados tivessem examinado e avaliado com proficiência os sinais clínicos da mãe e do feto, teriam cumprido a leges artis e identificado o sofrimento fetal a tempo de impedir que ele evoluísse para a morte, realizando uma cirurgia de emergência. Somente com as condições fetais normais se poderia permitir o parto transpélvico.
2.4. Cabia aos três médicos, ..., este último residente e sob a orientação dos dois primeiros, cumprir o Código de Ética Médica, em especial o disposto no seu artigo 57: «É vedado ao médico deixar de utilizar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento a seu alcance em favor do paciente.». O HmiB é um hospital dotado de todos esses meios. Todos eles estavam disponíveis; nenhum deles foi empregado na assistência e solução da gravidez de Hellen Cássia. Não foram usados nem mesmo os mais antigos meios para a assistência a um parto: a vigilância pessoal, a presença física ao lado da gestante, o acompanhamento a cada trinta minutos dos sinais materno-fetais, o toque bidigitial e a ausculta fetal. Tudo o que até as parteiras indígenas fazem nas suas tribos.
2.5. Nessas circunstâncias, omitindo-se, quando deviam e podiam agir; quando deviam e podiam empregar o melhor do progresso científico em benefício da paciente e do seu filho, porque tinham o dever legal de cuidado, proteção e vigilância para com eles, os denunciados criaram a real possibilidade da ocorrência do resultado da morte, que era previsível por qualquer deles.
3. Conseqüências jurídicas do crime. 3.1. Os médicos infringiram, individualmente (autoria colateral), o artigo 121, §§ 3.º e 4.º (c/c o artigo 13, caput, e § 2.º), todos do Código Penal. A conseqüência jurídica dessas omissões será a retirada de alguns dos seus direitos fundamentais, marcadamente a sua liberdade pelo prazo de até quatro anos, em detenção, com a condenação que se espera.
3.2. Para que isso seja constitucionalmente viável e possível, requer o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios se instaure a devida ação penal, citando-os para todos os seus termos, com as conseqüências da ausência ou da revelia processuais, e intimando-se as testemunhas/informantes abaixo arroladas para deporem sobre os fatos narrados.
Distrito Federal, 28 de Maio de 2001.
DIAULAS COSTA RIBEIRO, Promotor de Justiça Coordenador da Pró-Vida»
Em despacho de 5 de Junho de 2001, o Juiz da 3.ª Vara Criminal não recebeu a denúncia sob os seguintes fundamentos (folhas 59/61):
«Ao que deflui da redação e fundamentos da peça inicial acusatória (fls. 2/6) e do que consta do Laudo de Exame Cadavérico de fls. 46/46v, data maxima venia, o caso em enfoque não pode ser capitulado como de homicídio. Pois, segundo a definição clássica (in Com. ao Cód. Penal, de Nelson Hungria, Ed. Forense, 4.ª ed. - 1958, vol. V, pág. 36, § 6) “o sujeito passivo do homicídio é ser vivo, nascido de mulher”. E, ainda, acrescenta: “A destruição do embrião ou feto humano no útero materno não é homicídio, contemplando-as a lei penal sob o ‘nomem juris’ de aborto, menos severamente punido”.
Ora, consoante conclusão do Laudo de Exame Cadavérico de fls. 46/46v: “A morte ocorreu devida anóxia fetal intra-uterina” (sic). O que vale dizer (como, aliás, consta no topo do verso do laudo referido) que se trata de natimorto, o que, obviamente, impede que seja o caso tratado como homicídio.
Por outro lado, embora em tese se pudesse falar em aborto, como se pode inferir do relato do fato na peça inaugural, na verdade, ela sugere conduta culposa aos seus autores, ao dizer, no item “1.3. Às 15h50 a paciente expulsou um natimorto do sexo masculino;” e, no item “2.2. ...//... Mas os denunciados, por negligência, por omissão, ultrapassaram todos os limites dos riscos permitidos no trabalho de parto,...”, assim como, no item “2.3. Com essas omissões, criaram o risco de produzir o resultado morte, sem, contudo, assumi-lo.” (grifei). Todavia, a nossa lei penal, como é sabido, e notório, não contempla o “aborto culposo”, sendo o fato, sob este prisma, atípico. Incide, portanto, o contido no art. 18, § único: “Salvo nos casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente.”
E, apenas ad argumentadum, há que se consignar que se fosse o caso de aborto (doloso), este Juízo não teria competência para processar o feito, cuja competência exclusiva é do Tribunal do Júri.
Finalmente, como derradeira alternativa, poder-se-ia falar em eventual crime de lesão corporal na pessoa de Hellen Cássia, caso esta tivesse ocorrido, o que não se sabe, vez que a denúncia nenhuma referência fez a respeito.
Isto Posto e pelo mais que dos autos consta, como o fato narrado na peça inaugural acusatória, sob a ótica de nosso Direito Penal, é atípico, como lastro no inc. I, do art. 43 do CPP, não recebo a denúcia de fls. 2/6.
Sem custas.
Transitada em julgado, Arquive-se, com as devidas anotações e baixa.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Brasília, em 5 de junho de 2001». (Destaques do original)
Ciente do despacho no dia 11 de Junho, na mesma data foi interposto o cabível recurso.
Relatado.
2. Preliminar
Conhecendo o modelo padrão de recebimento de recurso em sentido estrito do Juízo recorrido, já na petição de interposição ficou registrado que como não houve citação, não existia relação processual instaurada, não sendo cabível contraditório antes do recebimento da denúncia. Portanto, não havia lugar para contra-razões. Esclareceu-se na oportunidade que por muito tempo foi aplicada analogicamente a essa situação processual penal o disposto no artigo 296 e parágrafos do CPC, que determinava, no caso de recurso contra o indeferimento da petição inicial, a citação do réu para acompanhá-lo.
Ocorreu que esse dispositivo foi revogado pela Lei n.º 8.952, de 13 de Dezembro de 1994, passando a viger com a seguinte redação: «Art. 296. Indeferida a petição inicial, o autor poderá apelar, facultado ao juiz, no prazo de quarenta e oito horas, reformar sua decisão. Parágrafo único. Não sendo reformada a decisão, os autos serão imediatamente encaminhados ao tribunal competente.»
Não cabem, assim, contra-razões em recursos como este sob o argumento da aplicação analógica do CPC. Autores renomados, que ainda mantêm essa anotação nos seus Códigos, como é o caso de Damásio de Jesus, na 15.ª edição do seu Código de Processo Penal anotado, de 1998, a toda evidência não fizeram a atualização legislativa.
Mas mesmo antes da mudança do CPC já havia oposição às contra-razões em casos como este:
1.ª – STF, Recurso Extraordinário n.º 115.743.7-RJ, Relator Ministro Octávio Gallotti, julgado em 24 de Junho de 1988, Brasília, Brasília, Revista dos Tribunais, vol. 636, ano 77, p. 370-6, Outubro de 1988. Denúncia. Rejeição. Recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público. Desnecessidade de intimação do indiciado para contra-arrazoar. Relação processual ainda não instaurada. Inteligência do artigo 588, parágrafo único, do CPP.
«Ementa. Não é exigível a abertura de vista ao indiciado para contra-arrazoar o recurso em sentido estrito interposto pela acusação do despacho que rejeitara a denúncia (artigo 588 do CPP).»
TJSP, Recurso Criminal n.º 136.891-SP, São José do Rio Preto, Relator Desembargador Cunha Bueno, julgado em 28 de Agosto de 1978, Revista dos Tribunais, vol. 522, ano 68, p. 355-6, Abril de 1979. Recurso Crime. Sentido estrito. Interposição do despacho que rejeita a denúncia. Desnecessidade de contra-razões do acusado. Preliminar repelida.
«Ementa. Não há instância instaurada quando a decisão rejeita a denúncia. Logo, não se há falar em contra-razões do acusado, dado inexistir relação processual regularmente instaurada.»
Repetindo, não cabem contra-razões neste recurso. Com as razões, caberá ao Juiz sustentar ou retratar sua posição. Naquela hipótese, caberá tão-somente a remessa do recurso ao Tribunal de Justiça, como ocorre, hoje, na apelação cível contra a rejeição da petição inicial.
Mas como foi previsto, o recurso foi recebido no dia 13 de Junho com o seguinte despacho: “Venham as razões. Após, as contra-razões”.
Prevendo também que a decisão impugnada será mantida, o Ministério Público apresenta a preliminar de não conhecimento das contra-razões, independente do seu teor.
3. Mérito
As razões invocadas na decisão recorrida se basearam, injustamente, em Nélson Hungria. Melhor direi: numa frase introdutória e, portanto, descontextualizada, desse autor. É evidente que um sistema jurídico constitucional que tutela a vida humana como bem supremo – desde a concepção até o último fio de vida autônoma – não iria deixar um pedaço dessa mesma vida sem proteção legal. Não há lacuna legal durante o parto e é o próprio Nélson Hungria que o afirma duas páginas após aquela indicada pelo Magistrado: «É de notar-se, além disso, que a própria destruição da vida biológica do feto, no início do parto (com o rompimento do saco aniótico), já constitui homicídio, embora eventualmente assuma o título de infanticídio». Consultei, por cuidado, a mesma edição referenciada na decisão. O texto transcrito encontra-se exatamente na página 38, final do item 7.[3]
O equívoco da decisão, se não pôde ser evitado com a leitura de duas páginas a mais dos Comentários, poderia ter sido afastado com a interpretação sistêmica do Código Penal, que neste caso exigiria a leitura um outro artigo, o 123, que trata do infanticídio. «Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após.» A preposição durante delimita o tempo do parto, o pedaço de vida que transcorre entre o seu início e o seu fim. Nesse pedaço de vida, que é aquele mesmo relatado na denúncia, a morte do feto nascente tipifica homicídio e, excepcionalmente, infanticídio. «Se não se verificar que a mãe tirou a vida do filho nascente ou recém-nascido sob a influência do estado puerperal, a morte praticada se enquadrará na figura típica do homicídio» (RT 491/292).
Antes da vigência do atual artigo 30 do Código Penal, Nélson Hungria sustentava – no mesmo volume dos Comentários – que o partícipe do infanticídio responderia por homicídio, afastando a relevância que foi atribuída à frase meramente introdutória citada na decisão recorrida.[4]
Por fim, nos comentários ao crime de infanticídio, na verdade um homicídio exceptum, o mesmo autor que serviu indevidamente de suporte para o indeferimento da denúncia acaba por desferir um golpe fatal na tese sustentada pelo Juiz:
«O sujeito passivo do infanticídio. O Código atual ampliou o conceito de infanticídio: o sujeito passivo deste já não é apenas o recém-nascido, mas também o feto nascente. Ficou, assim, dirimida a dúvida que se apresentava no regime do Código anterior, quando o crime se realizava in ipso partu, isto é, na fase de transição da vida uterina para a vida extra-uterina. Já não há mais identificar-se, em tal hipótese, o simples aborto, — solução que, em face do Código de 90, era aconselhada pelo princípio do in dubio pro reo [5]: o crime é infanticídio. Deixou de ser condição necessária do infanticídio a vida autônoma do fruto da concepção. O feto vindo à luz já representa, do ponto de vista biológico, antes mesmo de totalmente desligado do corpo materno, uma vida humana. Sob o prisma jurídico-penal, é, assim, antecipado o início da personalidade. Remonta esta ao início do parto, isto é, à apresentação do feto no orifício do útero. Já então o feto passa a ser uma unidade social. Não se pode negar que o feto nascente seja um ser vivo, embora não possua todas as atividades vitais. À imitação do Código italiano, o nosso não quis seguir a sugestão de Severi, no sentido de criar-se, sob o nome de “feticídio”, uma figura criminal intermédia entre o aborto e o infanticídio, a qual seria precisamente a ocisão do ser humano nascente; equiparou este ao nascido, tornando mais compreensiva a fórmula do infanticídio. Justamente dizia Impallomeni, a propósito da ocisão do feto intra partum: “Não se trata de aborto, pois este é a criminosa expulsão do feto e, na espécie, a expulsão é espontânea; nem a ocisão ocorre dentro do útero, mas quando a criança está para vir à luz, in ipso partu. A vida intra-uterina está terminada, sem que se tenha começado a extra-uterina; a criança acha-se num estado de transição, mas, não obstante, é um ser humano vivendo vida não mais uterina, e matá-lo é homicídio... É um homem que se mata no limiar da vida social.”
Antes de iniciado o parto, a ocisão do feto é aborto; iniciado o parto, o crime é infanticídio. Já não há mais distinguir entre vida biológica e vida autônoma. Esta, de condição necessária, passou a ser apenas condição suficiente do infanticídio. Há infanticídio desde que, começando o parto, o feto se podia considerar biologicamente vivo. Nem mesmo é necessário indagar se o feto era capaz de vida autônoma: basta averiguar, remontando-se ao momento anterior à expulsão, a presença de vida biológica, isto é, a existência do mínimo de atividades funcionais de que o feto já dispõe antes de vir à luz, e das quais é o mais evidente atestado a circulação sanguínea.»[6]
Comentando o Código Penal Português, Jorge de Figueiredo Dias, Catedrático da Universidade de Coimbra e um dos mais prestigiados penalistas europeus, apresenta razões mais do que suficientes para demonstrar o equívoco da decisão impugnada:
«1. O início da vida. § 7 a) Assim, logo o que a final se deixou dito no § 5 deixa compreender a essencialidade da pergunta sobre o momento em que começa a vida para efeito de delimitação do âmbito de protecção da norma relativa ao homicídio. Duas teses se apresentam aqui como possíveis e têm, na verdade, sido defendidas na literatura jurídico-penal. Segundo uma desses teses a vida começaria, tal como para o direito civil é prescrito pelo art. 66.º-1 do CC, com a completação do processo de nascimento (o “nascimento completo e com vida”): assim entre nós Maia Gonçalves art. 131.º 3. Segundo uma outra tese a protecção dispensada pelo crime de homicídio iniciar-se-ia não com a conclusão, mas pelo contrário com o início do acto de nascimento.
§ 8 Esta segunda tese é de sufragar (neste sentido também a doutrina e a jurisprudência absolutamente dominantes tanto na Alemanha: cf. por todos S/S/Eser 13 antes do § 211, como na Itália: cf. por todos Crespi/Stella/Zucallà/Ricciotti antes do art. 575 3). Em favor da primeira não é lícito esgrimir com necessidades ou conveniências de unidade da ordem jurídica — sabido, por um lado, que uma tal unidade não é de nenhum modo posta em causa pela diversidade de determinações conceituais e materiais operadas em diferentes domínios ou ramos de uma mesma ordem jurídica; e, por outro lado, que o direito penal assume a muitos títulos uma teleologia, uma funcionalidade e uma racionalidade próprias, que conduziram justamente àquilo que Bruns chamou a “libertação [hoje plenamente consumada] do direito penal relativamente ao pensamento civilístico” (Bruns, Die Befreiung des Strafrechts von zivilistischen Denkens 1938). Ora a verdade — e nisto reside o essencial e decisivo — é que o fim de protecção da norma do homicídio impõe que a morte dada durante o parto, seja qual for a via pela qual este se opere, se considere já um verdadeiro homicídio, antes que um mero aborto. Nesse sentido fala a necessidade de correspondência entre a especial força de tutela jurídico-penal e os especiais perigos que podem verificar-se no decurso do processo de nascimento; o que é tanto mais assim quanto a tutela jurídico-penal em caso de aborto é restrita a comportamentos dolosos (cf. infra art. 140.º § 29), pelo que a criança a nascer ficaria, no decurso do parto, completamente desprotegida face a ofensas (à vida, ao corpo ou à saúde) não dolosas. (Compreende-se que seja diversa a concepção dominante na doutrina e na jurisprudência espanholas — cf., por outros Vives Antón/Carbonell Mateu/ González Cussac 704 e Muñoz Conde 28 s. —, uma vez que o art. 146 do novo CP espanhol incrimina o aborto negligente.) [7]
§ 9. A esta consideração funcional-teleológica acresce aliás, se tanto se julgar necessário, um argumento textual: o de que, por um lado, o art. 136.º pune como homicídio privilegiado (não como aborto!) a morte dada pela mãe ao seu filho durante o parto e, por conseguinte, num momento em que o processo de nascimento não se completou ainda; e o de que, por outro lado, o crime de aborto é expressamente considerado como crime contra a vida intra-uterina, o que significa que ele não tem lugar quando começou já o período de expulsão. No sentido assinalado vão também as doutrinas e as jurisprudências absolutamente dominantes nos direitos alemão (por todos M/S/Maiwald I § 1 8) e suíço (Trechsel art. 111 3; contra todavia Stratenwerth I § 1 2: “separação da criança do corpo da mãe”).
§ 10. Quando deva considerar-se que se iniciou o acto de nascimento é questão que, em alguns casos, pode conduzir (e tem conduzido, v.g., na jurisprudência alemã) a dificuldades. Aí assume papel decisivo o estado dos conhecimentos da medicina; naturalmente, quando conexionado com a teleologia e a funcionalidade próprias da solução jurídica que se busca. A melhor solução, perante o estado daqueles conhecimentos, é a de considerar que esse momento se verifica — não necessariamente quando se inicia o “processo de dilatação”, mas — quando se inicial contracções ritmadas, intensas e frequentes que previsivelmente conduzirão à expulsão do feto. Que tais contracções surjam naturalmente ou sejam artificialmente induzidas (nomeadamente por meios medicamentosos), deve considerar-se em princípio indiferente (cf. também, em todo caso, Lüttger, Heinitz — FS 1972 359 ss.). Se, mesmo que as contracções com as características aludidas se não verifiquem, tiver lugar o processo cirúrgico (“cesariana”), será então o momento em que este processo se inicia a marcar o início da possibilidade de realização do tipo de ilícito objectivo do homicídio. Já se tem pretendido que, podendo a intervenção cirúrgica visar concomitantemente fins diferentes do parto, é a incisão sobre o útero que deve conformar o momento inicial (assim S/S/Eser 13 antes do § 211 e os por ele citados). Mas, desde logo, a incisão sobre o útero da mulher grávida pode ter finalidades diversas das do parto, v.g., a extracção de um mioma conservando lá o feto; e, de todo o modo, não se compreende por que razão os perigos relacionados com o processo cirúrgico anterior à incisão do útero (v.g., com o processo de anestesista) não devam ser cobertos pela tutela própria do homicídio.
§ 11. b) A capacidade de vida autónoma do feto não é pressuposto da qualidade de pessoa para efeito de integração do tipo objectivo de ilícito. Suficiente é que a criança, no referido momento inicial do nascimento, esteja viva. Por isso o crime de homicídio é possível relativamente a crianças que, pelos mais diversos motivos (idade, defeituosa conformação orgânica — incluída a microcefalia —, ferimentos, doença progressiva, etc.) não tenham nenhuma possibilidade de continuar a viver fora do ventre materno. Também, por conseguinte, a em alguns países denominada perfuração — craniotomia em virtude de macrocefalia, quando a cesariana já se não revela viável (hipótese hoje felizmente raríssima e praticamente impossível em caso de gravidez medicamente assistida) — realiza o tipo objectivo do homicídio, não o do aborto. Diferentemente, os casos das chamadas molas hidatiformes completas configuram hipóteses relativamente às quais o crime de homicídio (como, de resto, também o de aborto) não é possível. Já é porém duvidoso que o mesmo deva dizer-se para os casos de anencefalia quando, verificado o nascimento, subsista ainda a função cárdio-respiratória; tudo devendo depender aqui de se verificar ou não um estado de morte cerebral de acordo com os critérios aplicáveis (cf. infra § 15ss. e sobre toda a questão João Loureiro, Transplantações: um Olhar Constitucional 1995 58 ss.).» [8]
Posto isso,
Não há dúvida que a decisão recorrida, ao admitir um vazio legal para proteger a vida durante o parto, negou vigência ao artigo 5.º da Constituição Federal, bem como aos artigos 121, §3.º e 123 do Código Penal. Não há dúvida que a comissão por omissão culposa, que provoca a morte do feto nascente, é típica de homicídio, salvo quando praticada pela mãe sob o estado puerperal, hipótese em que configura homicídio excepto, ou privilegiadíssimo, ou infanticídio, como o designa o Código Penal.
Assim, espera o Ministério Público o processamento e provimento deste recurso para, reformando a decisão recorrida, receber ou determinar o recebimento da denúncia, com o devido e regular processamento da ação penal até o seu fim.
É o que tem a dizer
Distrito Federal, 20 de Junho de 2001
DIAULAS COSTA RIBEIRO
Promotor de Justiça – Coordenador da Pró-Vida
[1] A data da última menstruação foi 28 de Novembro de 1999 e a data provável do parto era 3 de Setembro de 2000. A paciente estava em sua primeira gestação, durante a qual realizou quatro consultas de pré-natal, sem relato de aborto ou intercorrências.
[2] Feitos os exames de rotina, constatou-se fundo de útero a 30 cm, dinâmica uterina de 2/10’/30’’ (duas contrações a cada 10 minutos, com duração de 30 segundos cada) colo apagado, 80% pérvio para 2-3 cm e batimentos cardiofetais de 136 bpm (batimentos por minuto).
[3] Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, vol. 5 (9), 4.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1958, p. 38.
[4] Idem, p. 266.
[5] Escrevíamos, ao tempo do Código revogado: “Como deve ser resolvida a hipótese em que a ocisão é praticada in ipso partu (na fase de transição da vida uterina para a vida extra-uterina)? Não se trata propriamente de aborto, porque não é provocada a expulsão do feto; e não se trata igualmente de infanticídio, porque este supõe um infante com vida autônoma... Para dirimir a controvérsia doutrinária em torno de tal caso, o atual Código italiano incluiu expressamente a hipótese sob o nomen juris de infanticídio (art. 578). Perante a nossa lei, que silencia a respeito, e dado que seria absurda na espécie a isenção de pena, tem de ser reconhecida a hipótese mais favorável ao culpado, isto é, o crime de aborto.”
[6] Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, vol. 5 (9), 4.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1958, p. 257-9:
[7] Tomás S. Vives Antón (Org.), Comentarios al Código Penal de 1995, vol. 1 (2), Valencia, Tirant lo blanch, 1996, p. 765: «Título II — Del aborto. Artículo 146. El que por imprudencia grave ocasionare un aborto será castigado con pena de arresto de doce a veinticuatro fines de semana.
Cuando el aborto fuere cometido por imprudencia profesional se impondrá asimismo la pena de inhabilitación especial para el ejercicio de la profesión, oficio o cargo por un período de uno a tres años.
La embarazada no será penada a tenor de este precepto.
5. Aborto imprudente. El artículo 146 castiga la realización del aborto por imprudencia grave, viniendo a resolver la vieja polémica doctrinal en torno a la admisibilidad o no del aborto imprudente: cabe el aborto imprudente realizado por tercero, pero es impune el autoaborto imprudente, esto es, la realización de actividades peligrosas por parte de la embarazada, si bien debe entenderse que el dolo eventual; esto es, la asunción del resultado abortivo, podría dar lugar a la aplicación del número 2 del artículo 145.
Por lo demás, pueden darse por repetidas cuantas afirmaciones se realizaron a propósito del homicidio por imprudencia grave, especialmente las referidas a la imprudencia profesional. En este sentido, recordaremos que la imprudencia profesional no constituye una modalidad cuantitativamente distinta de la imprudencia grave, sino que se trata de una clase de imprudencia cualitativamente diferente. Es necesaria, en definitiva, una conexión entre el resultado abortivo y el ejercicio de la actividad profesional. Pero también, debe afirmarse con ello, que basta el establecimiento de esa relación para afirmar la aplicación del párrafo segundo del artículo 146. La introducción de la pena de inhabilitación especial para el ejercicio de la profesión, oficio o cargo, tuvo durante la tramitación parlamentaria. Y ha de ser bien acogida. Precisamente desde una visión tuteladora de la salud de la embarazada, parece lógico prever esta pena precisamente para la imprudencia. Se fundamentada, desde la óptica de la prevención, desde luego mejor para la modalidad imprudente que para la dolosa.» (Nota acrescentada pela Promotoria de Justiça)
[8] Jorge de Figueiredo Dias, Comentários ao artigo 131.º do Código Penal Português, In: Jorge de Figueiredo Dias (Dir.), Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, p. 6-8.
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