O crime de estupro e o transexual
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Diaulas Costa Ribeiro
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Este é um artigo oportunista. Surge no momento em que o Conselho Federal de Medicina reconheceu que a operação de mudança de sexo é uma intervenção curativa. Isso significa o fim da punição do médico que a fizer. Antes, como ocorreu com o Dr. Roberto Farina, essa cirurgia era considerada lesão corporal gravíssima. Era crime. Já deu cadeia. Nos últimos tempos dava cesta básica, que é a maior metáfora que se criou no Brasil para matar a fome de justiça do povo.
Essa mudança deveria viabilizar a felicidade de ‘‘muitos’’ e ‘‘muitas’’. Deveria, isso mesmo, porque, ao dar o primeiro passo fora do hospital, o transexual operado encontrará o mesmo Brasil que deixou três ou quatro semanas antes: um país de costas virada para e‘‘ele’’ ou ‘‘ela’’. Por sinal, o Brasil só não vira as costas para o Oceano Atlântico para não perder de vista a Europa. Malcasado com a Argentina, com quem sempre dormiu de costas viradas, não perde a esperança de ainda conquistar a velha namorada, ela também em crise conjugal com os Estados Unidos, que deixou escapar um caso sério com a China.
O Brasil é mesmo um país de costas viradas. Para o seu povo, principalmente. E se há uma brasileira que concorda comigo é a suíça Roberta Close. Esse trocadilho é mais grave do que parece. O passaporte verde-amarelo da pessoa a que me refiro diz tratar-se de um brasileiro. Luís Gambino. Mas na Suíça, onde vive atualmente, ela é frau Roberta, ou madame Robertá, conforme esteja em Zurique e Berna ou Genebra e Lousane. Uma mulher. E isso diz tudo.
Roberta é linda, é educadíssima, é bem informada do mundo que vive, conversa com fluência em inglês e francês e já arrisca o alemão, dando um enorme charme e delicadeza a essa língua. É encantadora.
Há pouco tempo esteve em Portugal participando de uma mesa-redonda sobre transexualismo. Foi clara, objetiva, tratou de um assunto íntimo com a elegância de uma princesa, contou do seu prazer sexual, da forma como faz sexo, da lubrificação vaginal, de tudo o que a curiosidade humana tem vontade de saber mas não tem oportunidade de perguntar.
Por cerca de 90 minutos não fugiu de nenhuma pergunta, da mais comum — A operação dói? — à mais embaraçosa — Você pretende ter filhos? Esteve entre médicos cirurgiões, psiquiatras e outros profissionais, inclusive religiosos. Foi um espetáculo que contagiou a todos. Do auditório à audiência da SIC, que bateu todos os recordes dos quatro anos de televisão privada no país. O padre chegou a dizer que sua imensa beleza era uma dádiva de Deus. Não faltou nem a lembrança de que Roberta tinha uma aparência fatímida. O que é mesmo verdade. É muito parecida com a imagem concebida pelo escultor portista Manoel Tendin, o rosto de Nossa Senhora de Fátima que o mundo conhece.
Roberta também tratou com total solidariedade um casal de duas mulheres. Uma delas, de 24 anos, está sendo transformada para Miguel. Já lhe foram retiradas as glândulas mamárias, a voz está engrossando, já há pêlos faciais e, para o final do ano, será implantada uma prótese peniana, incluindo uma bolsa escrotal. Não haverá ereção natural, como não se conseguiu, ainda, fazer a lubrificação vaginal, o que não é problema só dos transexuais operados, convenhamos.
Em Portugal, mesmo sendo um país conservador, nada disso é proibido. Existem inúmeros transexuais operados no Hospital Santa Maria, em Lisboa, que é público. Só não é público o nome desses pacientes. Isso porque a mudança do nome é feita num período curto, em segredo de justiça. A documentação e substituída com discrição. Não há a humilhação de dizer mil vezes que apesar do passaporte de homem, você é uma mulher (ou vice-versa). Ou que você é mulher. Mas é brasileira. E no Brasil, sabe-se como é... Isso também já ajuda um pouco.
Das perguntas respondidas, a uma que lhe fiz Roberta respondeu que o seu maior pânico é ser estuprada. O que demonstra a sua plena feminilidade. O estupro é o grande pavor de pelo menos 100% das mulheres normais. E na boca de uma dessas, seria uma resposta vulgar. Mas na dela, quem entrou em pânico fui eu.
Na visão de um penalista, Roberto Close pode se estuprada? O estupro, era quase dispensado dizer, é a conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça contra a mulher. Conjunção carnal é cópula pêni-vaginal. O agressor tem que ter pênis. A vítima tem que ter vagina. A cópula com outras partes do seu corpo descaracteriza o estupro. A violação anal, oral ou interfemural, por exemplo, não é estupro, mas atentado violento ao pudor.
Além da vagina (em 1940 o Código Penal foi pleonástico), a vítima do estupro tem que ser mulher. E aqui reside o problema. Mulher sempre foi um conceito naturalístico. Não é um conceito normativo, instituído pela lei. Não foi a lei quem criou a mulher (graças a Deus!). Nenhuma lei diz que uma mulher é um bípede, sem penas etc. Mas em compensação, a lei só considera mulher o ser assim identificado na certidão de nascimento. É o chamado sexo jurídico, com definição meramente visual, intuitiva. Empírica, portanto. É isso que Roberta Close não conseguiu reverter. Graças aos ingleses — foi operada em Londres —, conseguiu mudar um erro da natureza. Graças ao seu país, e só a ele, continua desamparada, sofrida, humilhada: quando nasceu, disseram que era homem e bateram-na para que chorasse. Ainda hoje não mudaram de opinião. Nem de comportamento.
Logo, se para o Direito, para os tribunais, Roberta é um homem, para o mesmo Direito e para os mesmos tribunais Roberta não pode ser vítima de estupro, que exige uma mulher nessa condição. Se os tribunais insistem que ela é Luís, não poderão conceber estupro contra homem.
Por outro lado, não poderá ser vítima de atentado violento ao pudor porque esse crime exige que a violência sexual não seja pêni-vaginal. E vagina Roberta tem. É, na conclusão dos tribunais, um homem com vagina, o que dá a idéia do nosso sistema jurídico.
Há alguns enfeites acadêmicos para continuar esta exposição. Um deles é o erro de tipo. O estuprador teria errado com relação a um dos elementos do tipo. Julgava tratar-se de mulher, quando ‘‘estuprava’’ um homem. Não se confunde esse erro com o erro sobre a pessoa. Erro sobre a pessoa é estuprar a Maria achando que era a irmã dela. Não muda nada em termos de pena. O erro de quem estupra um homem achando que era uma mulher é erro quanto a um elemento essencial do tipo penal do estupro. Vai beneficiar o criminoso.
Os elementos essenciais do tipo podem ser naturalísticos ou normativos. Os primeiros, como diz o nome, decorrem da própria natureza. Fogo, água, veneno, mar, rio, são alguns casos. Os outros são conceitos jurídicos. Coisa móvel é um bom exemplo. No Direito Civil exclui os aviões e os navios. No Direito Penal inclui tudo o que pode sair de um lugar para outro. Obviamente os aviões e os navios. Mulher e homem, entretanto, eram conceitos naturais. ‘‘Porque homem é homem, mulher é mulher’’ e não havia o que dizer. Mas com os transexuais não se pode falar em conceito natural, independentemente da transformação cirúrgica. Digo isso porque o transexual o é com ou sem a operação.
No caso do homem e da mulher, o sistema jurídico incorporou um elemento definido pela natureza. No caso dos transexuais, o sistema jurídico é que deverá criar esse conceito, equiparando-os aos homens ou às mulheres, conforme o caso, ou criando o terceiro e quarto sexos, o que não é recomendável. Não é solução. Seria a discriminação documentada. Não mudaria nada. Seria a mesma que já existe. E vendo Roberta Close, ouvindo sua história, isso ainda poderia ser pior do que está. Qualquer solução jurídica tem que sepultar o passado. Nem a figura do erro essencial para a nulidade do casamento pode ser admitida. Seria conviver com uma arma eternamente apontada para sua cabeça. Nem a proibição de adoção pode ser tolerada. Se houver qualquer restrição em razão do sexo, haverá discriminação. E é com isso que se pretende acabar.
No resumo, a mulher, por transformação cirúrgica de transexual, enquanto não mudar juridicamente o sexo não se enquadrará no restrito rol das possíveis vítimas de estupro. Como não há estupro de homem, a violência sexual ficará sem punição. E como não há atentado violento ao pudor com cópula pêni-vaginal, a violência sexual ficará igualmente sem punição. Remanescerá, nos dois casos, apenas o constrangimento ilegal, que em comparação com o estupro e o atentado, tem pena simbólica. Umas duas ou três cestinhas básicas. Mais nada.
É preciso urgentemente repensar a posição brasileira sobre esse tema. Enquanto isso (e esse ‘‘isso’’ promete longa vida porque o Congresso está assoberbado de coisas importantíssimas para o Brasil, que, entretanto, não se devem confundir com coisas importantíssimas para o povo), é melhor que Roberta Close continue na Suíça. É como o dinheiro brasileiro que também mora lá. Faz muita falta aqui. Mas enquanto houver estupradores soltos, banco suíço é melhor que o nacional.
Há, por fim, uma última questão. Como cidadã suíça, ela é mulher. Sendo também cidadã brasileira e estando em território brasileiro, onde ingressou como cidadã suíça, carimbando o passaporte, qual dos dois sexos jurídicos prevalece? (Se isso não for incorporação é saudade do professor Haroldo Valadão). Se alguém souber, responda aqui na próxima semana. Espero, ainda, a posição do ministro Cernicchiaro para a questão penal, em face da futura parte especial do Código. Até lá.
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