Mudando o alvo das armas
Diaulas Costa Ribeiro
Promotor de Justiça Professor Universitário
Os senhores da indústria e comércio de armas não falam outra língua senão a do lucro. Não se importam com a dor de uma morte
Publicado no Correio Braziliense 16 de junho de 2002 - Tema do Dia -------------------------------------------------------------------------------- Diaulas Costa Ribeiro
Todas as propostas governamentais de política criminal e segurança pública dos últimos anos têm uma lógica única: construir presídios na mesma proporção em que se fazem cemitérios. Cuidam tão-somente dos resultados, mesmo sabendo que cerca de 80% das mortes criminosas ocorridas no Brasil são produzidas por armas de fogo, fabricadas a princípio para assegurar a legítima defesa ‘‘do homem de bem’’, o que é pura ficção. As armas migraram para a injusta agressão – o crime – e a indústria armamentista passou a atender a esse segmento com a total conivência do Estado, que nada fez para impedi-la. Antes, contentou-se com o discurso da repressão ao porte ilegal proposto pela própria indústria, interessada na reposição das armas apreendidas e destruídas.
Se não bastasse, o Estado brasileiro produz armas e munição, uma simbiose infernal que alimenta a guerra civil que o próprio Estado deveria combater. À indústria, caberia dotar as armas de aparatos aptos a impedir essa desvirtuação, criando, por exemplo, a chamada smart gun, uma arma inteligente, capaz de reconhecer o dono, titular de uma senha para uso, o que impediria o uso impróprio, inclusive por crianças e adolescentes, nas mãos dos quais estavam mais de 30% das armas apreendidas no DF nos últimos anos.
Mas ao contrário, a indústria aumentou sua produção, combateu o controle do Estado, reduziu os custos e por isso barateou os preços. Para não aumentar custos, recusou-se a fazer armas inteligentes, a viabilizar o DNA dos projéteis assassinos e até mesmo a gravar o número da arma em pelo menos três locais, como nos automóveis, impedindo a falsificação. Para baixar custos, deixou até de fazer a gravação do número em baixo relevo e passou a fazê-la com laser, facilitando a raspagem e a falsificação e impedindo a identificação da cadeia dominial, do fabricante ao criminoso. Com essas medidas, a indústria não só tirou proveito do crime, mas associou-se a ele, concorrendo para a impunidade dos criminosos que prestigiam o seu produto.
Mais da metade dos pacientes das emergências hospitalares no DF são vítimas de armas de fogo, que matam mais de 500 pessoas e deixam mutiladas e inválidas milhares de outras, todos os anos. E para cada morto, o contribuinte perde o pré-natal, a licença maternidade, o parto, as vacinas obrigatórias, os atendimentos médicos, a escola fundamental, média e superior. Após o disparo, o mesmo contribuinte vai pagar a conta hospitalar. E para atender um baleado, outros ficarão sem atendimento, o que explica o modelo de ‘‘hospital de guerra’’ que funciona nos Hospitais do Gama, de Ceilândia, de Taguatinga e o Hospital de Base, principalmente. Qualquer outro paciente que busca um hospital público será preterido pelas emergências das vítimas das balas perdidas e achadas. Nas seqüelas, o paciente terá alta do hospital de socorro e irá para o Sarah, também público, onde permanecerá por meses e anos com assistência paga pelo contribuinte.
Paralelamente ao tratamento hospitalar, entrarão em ação a Polícia Pública, o Ministério Público, a Defensoria Pública e a Justiça Pública, que, ao final, colocarão o assassino na cadeia, onde será mantido pelos cofres públicos, os mesmos que pagarão indenizações e pensões às famílias enlutadas ou de outra forma vitimadas. Ou seja, enquanto a indústria de armas enriquece, a cidadania empobrece perdendo cidadãos e pagando essa fatura bilionária.
Para o Ministério Público, basta! É hora de cobrar a conta, de cessar os prejuízos que esse segmento provoca nos cofres públicos, inviabilizando a prestação de melhores serviços à população, como hospitais e justiça.
Cada arma criminosamente utilizada deve gerar a responsabilização civil do fabricante e revendedores em favor do Fundo de Interesses Difusos do Ministério Público da União ou dos Estados, que deverá financiar a melhoria dos serviços hospitalares públicos e da qualidade de vida das vítimas da violência urbana. Também deverão ser incentivadas ações individuais contra fabricantes e comerciantes de armas para que as vítimas possam obter a justa reparação para os danos morais e materiais sofridos em cada caso.
Os senhores da indústria e comércio de armas não falam outra língua senão a do lucro. Não se importam com a dor de uma morte, não sabem quanto ela custa, nem se interessam em saber quem paga por ela. Como bons lobistas, defendem e justificam os seus números indicando os empregos diretos e indiretos que proporcionam. Neste segmento, nunca se lembram de incluir os hospitais, as funerárias, o sistema público de polícia e justiça, e a indústria do medo, que vai da segurança privada à blindagem de veículos, da construção civil ao transporte público.
Se é assim que agem esses senhores, chegou a hora de o Ministério Público apresentar-lhes a conta, virando o cano e mudando o alvo das armas de fogo no Brasil.
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