Mudança de hábito: uma beca para o Ministério Público
Diaulas Costa Ribeiro
Promotor de Jutiça Professor Universitário
I - INTRODUÇÃO
II – O MODELO EM CONCRETO
a) A
cor vermelha
b) Os
botões
c) As
pregas sobre os ombros
d) A
cinta
III - CONCLUSÃO
Desenho da beca (frente)
Desenho da beca (costas)
I - INTRODUÇÃO
A roupa é
um sistema de signos, uma linguagem que tem permitido a comunicação entre os humanos há
dezenas de séculos. E se a maneira de vestir, diz a romancista anglo-americana Alison
Lurie1, um idioma, deve ter um vocabulário e uma
gramática como qualquer outro. Mas na língua das roupas também há dialetos, sotaques e
contínua mudança. Novas idéias e fenômenos exigem, além de palavras novas, estilos
novos. E se a palavra, ou melhor, se um estilo antigo é revivido, o é com uma signficado
atualizado.
Tomando a
língua como paradigma, nasceu a proposta de uma beca para o Ministério
Público. A veste atual é um uniforme, uma peça convencional imposta por padrões
externos, sem qualquer critério que não tenha sido a idéia de copiar o modelo do Poder
Judiciário que, por sua vez, seguiu um costume da nobreza romana. Nada mais do que uma
farda, como se o Ministério Público e o Poder Judiciário fossem uma mesma corporação,
uma só instituição que distingue as "patentes" dos seus membros pela divisa,
pelo debrum que contorna a gola, normalmente um cordão-de-são-francisco, ou uma faixa
envolta à cintura.
Continuar
vestindo essa farda, como se a relação entre o juiz e o promotor fosse a mesma de entre
um tenente e um sargento, á abdicar da autonomia do Ministério Público, é abrir mão
da sua individualidade institucional, é abandonar o direito a um discurso autônomo,
próprio, na linguagem da roupa. Essa linguagem, com a qual deveria estabelecer uma
comunicação básica e imediata com a sociedade, mantém-se invisível. Ninguém enxerga
o Ministério Público. Para o homem do povo, para a imprensa inclusive, há sempre uma
pergunta ao oficial de justiça ou aos policiais militares – Quem é o promotor? Quem
é que está falando (no Júri)? Quem é o juiz? Quem é o advogado? Não há signo nem
significado. Num cenário em que todos os atores são diferentes, a sociedade os vê
iguais. Além disso, a beca negra não espelha, hoje a alma do Ministério Público.
Essa
individualidade sofre, em Brasília, uma agravante que não deve ser local: promotores
aposentados passam, em muito pouco tempo, à advocacia. Promotor ontem, advogado hoje, com
a mesma beca. Menos freqüente, advogado hoje, promotor amanhã. Mas quando isso ocorre,
ocorre sem a mudança da roupa.
Permita-me
ilustrar com um exemplo pessoal: fui advogado por vários anos. Sempre usei uma beca
preta, padronizada pela Casa Sucena, do Rio de Janeiro. Usei essa mesma beca no
Ministério Público. Só em Júri foram duas centenas de vezes. Quando me afastei desse
tribunal, presenteei um irmão advogado que continua a usá-la. Encomendei outra à mesma
Casa, que também tem um modelo "padronizado" para o Ministério Público da
União, que é o mesmo estabelecido pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal para os
seus Juízes. São idênticas. Não cheguei a usá-la porque também a doei. A uma
advogada, por acaso. Pela linguagem da beca, conclui-se nunca se estabeleceu qualquer tipo
de comunicação.
A proposta
de "mudança de hábito" é a consagração da autonomia institucional e social
do Ministério Público. Se a sua luta na Constituinte buscou distinção; se se incluiu o
Ministério Público na divisão de Poderes do Espírito das Leis, havendo, nas grandes
democracias modernas, três Poderes e um Ministério Público, harmônicos e
independentes, o que já ocorre no Brasil, não há justificativa para não se instituir
essa separação, essa independência pelo Espírito das Becas2.
Foi com esse objetivo que propus em Brasília e proponho ao Brasil uma veste talar
ministerial.
índice
II – O MODELO EM CONCRETO
A beca
sugerida insere-se numa proposta geral para o Ministério Público, objeto da minha tese
doutoral, ainda inédita. Foi concebida em Portugal, onde vivi até o ano passado, e
confeccionada em um "atelier" tradicional de Coimbra, especializado em vestes
acadêmicas e profissionais. Numa escala de valores busquei atingir dois níveis:
expressividade e funcionalidade. Como elementos do primeiro, o simbolismo da cor vermelha,
os cinco botões apostos no peito, as cinco pregas nos ombros e a cinta em casa-de-abelha.
Como funcionalidade optei pelo tecido de microfibra bem adaptado aos vários climas
brasileiros, com a comodidade de não amarrotas após horas de uso ininterrupto; por um
corte bastante fácil, sem qualquer penduricalho e, por fim, um preço acessível a
qualquer Promotor de Justiça ou Procurador da República. Não custará mais de R$300,00.
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a) A cor vermelha. A proposta da cor vermelha dispensava fazer o
contraste com o preto. O vermelho sempre foi associados o Ministério Público, desde o
magistrado de la robe rouge francês. Mas entre o instituído e a proposta, não
custa dizer que a cor preta é a cor da noite e da escuridão. Por milhares de anos, diz
Alison Lurie, representou a tristeza, o pecado e a morte. É a cor tradicional do luto e,
na mitologia clássica, a própria Morte aparece em uma veste zibelina. Outra antiga
associação é ao ascetismo religioso e sexual, como negação simbólica da
sensualidade: monges, sacerdotes e scholars com freqüência usam preto. É associado ao
sobrenatural, mas com os poderes das trevas, e não da luz. Anne Hollander3 observa que o uso do traje todo preto, ou quase todo
preto, pode Ter vários significados. Quando todas pessoas estão usando cores vivas ou
suaves, o surgimento e de um homem ou uma mulher de preto pode causar um grande impacto
dramático. Dependendo da situação e do estilo do traje, o recém-chegado pode parecer
venerável, diabólico, perigoso, melancólico, pesaroso ou qualquer combinação dessas qualidades.
Complementando
esse raciocínio, não poderia deixar de lembrar os estudos da cromoterapia, que associa
as cores à cura. Para ela, cada cor tem o seu lugar, seja no espetro solar, nas faixas de
energia ou no corpo humano, sempre trabalhando para estimular processos de cura que
envolvem a percepção de energias suspensas no ar. O espectro solar é dividido em sete
ramificações, ou sete cores, e suas ondas vibram em freqüências específicas que atuam
nos chamados chacras, que são pontos carregados de tensão e responsáveis por irradiar
ondas energéticas para o resto do organismo. Na sua base, o chacra 1, localizado na parte
inferior do corpo, junto ao cóccix, na altura das supra renais, está a cor vermelha, que
significa energia física e agressividade. Ela é a responsável pelo sistema
circulatório4. Ou seja: a cor vermelha não é um
enfeite, um colorido para ser só visto. É também uma linguagem silenciosa do corpo e da
mente. E nada mais próprio do Ministério Público do que essa energia fisica, essa
agressividade institucional na defesa intransigente dos valores que tem sobre os ombros.
Como veste
talar (não é inócuo lembrar que talar não significa roupa preta, como se tem afirmado,
mas roupa comprida, até o tornozelo) a toga aparece vestindo estátuas de deuses e
imperadores em ilustrações greco-romanas, em mosaicos bizantinos, em esculturas e
iluminuras dos manuscritos da idade Média. Por sinal, os romanos herdaram a toga dos
etruscos, para que fosse usada na cor branca pelas classes altas, marcadamente pelos
senadores. Durante a adolescência, os meninos usavam-na com um debrum na cor vermelha.
Era a toga prætexta. Quando atingiam a puberdade, essa toga era substituída por
outra integralmente branca, em um cerimonial próprio. Era a toga virilis. A toga
negra, contudo, era símbolo de luto, do fim5.
A toga
também era usada por homens de idade ou de proeminência, durante a Renascença e ainda
durante o século XVIII, assumindo formas diferentes na medida em que a moda se
transformava, mas sem perder o significado Durante esse século, a toga foi abandonada
como indumentária pública, mesmo para as pessoas mais velhas. Porém, sobreviveu como
roupa ritual da religião e do Direito. A batina, as togas e as becas têm essa origem. A
cor preta, contudo, vem, como disse, da tradição romana para o luto ou para as
cerimônias solenes e magistráticas.
Tenho,
entretanto, uma explicação para justificar a cor preta na veste talar dos juízes. O
preto não é propriamente uma cor, mas a representação da ausência de luz. Quero
dizer, o preto não reflete os raios luminosos. Absorve-os. Da mesma forma, o juiz põe
fim a todas as demandas, a todas as questões, a todas a provocações. Estático,
imparcial, sem iniciativa processual, depositam-se nele todas as expectativas da
sociedade.
Em
contrapartida, a cor vermelha é um símbolo de vigor. "It symbolizes the pulse of
life, passion, elation, and energy. Red advances visually, a property that makes it seem
closer do the viewer than another color the same distance away, and one that may account
for red´s seductive reputation. In Chinese culture, red (the symbol of active force), not
white, is the counterpoint to black (the symbol of passive force)"6.
Desde a sua
origem, considere-se a francesa ou portuguesa, o Ministério Público foi associado à cor
vermelha, que simboliza a força da vida, a paixão, a energia. Além disso, como afirma
Mary Carthe no parágrafo acima, o vermelho é a cor da proximidade, da intimidade. Na
cultura chinesa, é ela, a cor vermelha, e não a branca, o símbolo da força ativa, ao
contrário da cor preta, que representa a força passiva.
A proposta
de uma beca na cor vermelha teve esse objetivo. Simbolizar, na linguagem da roupa, a vida,
o vigor, a força, a ação, a energia, a intimidade e a proximidade que o Ministério
Público deve ter com a sociedade e pela sociedade.
Por fim, a
escolha de uma tonalidade vermelha não foi aleatória. De uma paleta de 18 alternativas
foi escolhida a que apresentava um conjunto de tons cromáticos mais próximo do sangue
humano. A idéia, óbvia, foi representar a vida, viabilizando uma associação imediata
entre o Ministério Público e a sua defesa. Doravante essa cor será denominada "Vermelho
Parquet®.
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b) Os botões. Os botões, em número de cinco, todos redondos e
fixados no centro da região peitoral, representam o equilíbrio ("in medio virtus")
e a universalização dos valores defendidos pelo Ministério Público nos cinco
continentes (Confira-se o item 1 do molde).
c) As pregas sobre os ombros. Também em número de cinco, associei a
estética da roupa a cinco valores supremos da humanidade, os quais estão sobre os
ombros, em direção aos braços e às mãos do Ministério Público, encarregado de
defendê-los: a vida, a liberdade, a dignidade da pessoa humana, a natureza e o Estado
Democrático de Direito (Confira-se o item 2 do molde).
d) A cinta. A cinta foi o último componente acrescido ao modelo
apresentado. Busquei um símbolo de unidade, de indivisibilidade, de força, de trabalho, de perseverança. Tudo o que o Ministério Público deve ser e
Ter. Prevaleceu um tipo de "bordado" em relevo no próprio tecido, sem qualquer
divisão ou emenda, conhecido como "casa-de-abelha", lembrando um favo de mel
(Confira-se o item 3 do molde).
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III - CONCLUSÃO
Posto isto, a adoção dessa beca, com a especial característica do "Vermelho
Parquet"®, insere-se no contínuo processo de autonomia e afirmação social e
institucional do Ministério Público, iniciado na Constituição de 1988. O Ministério
Público não pode continuar incógnito ou confundido com juízes, advogados ou padres,
como bem ilustra a Cartilha do Ministério Público elaborada pela Promotoria-chefe de
Taguatinga, DF. Também não pode continuar vestindo-se de preto, cor incompatível com o
seu vigor, com o seu dever de ação, com a sua força. O Ministério Público precisa
marcar a diferença, mudando literalmente de hábito!
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© 1998
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Desenho
da beca (frente)
1 – Cinco botões até a cintura, com paty embutido
2 - Cinco costuras abrindo em pregas-macho
3 - Cinta em "casa-de-abelha"
4 – Bolso paulista lateral
índice
Desenho da
beca (costas)
índice
Bibliografia:
1 Lurie, ALISON.
A linguagem das roupas. Rocco. Rio de Janeiro, 1999, 285 pp.
2 Souza, GILDA DE MELLO.
O espírito das roupas. A moda no século dezenove. Companhia das Letras, São Paulo,
1996. 255 pp.
3 In, Dias, MAURO MENDES.
Moda: divina decadência. Hacker Editores. São Paulo, 1997, 149 pp.
4 Maciel, NAHIMA.
As Cores têm Cura. Entrevista concedida por Mateus de Oliveira, João Cláudio da
Silva e José Acleildo de Andrade à jornalista do Correio Braziliense, publicada em 4 de
Maio de 1988. DOIS, P. 6.
5 Laver, JAMES.
Breve historia del traje y la moda. Ed. Catedra. Madrid, 1982, 373 pp.
6 Garthe, MARY.
Fashion and color. Rockeport Publishers. Rockeport. Massachusetts, 1995, 157 pp.
7 Koressawa, WILSON ISSAO,
coordenador. Conhecendo um Promotor de Justiça. Cartilha educativa da Promotoria-Chefe de
Taguatinga, DF, 12 pp.
índice
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