Indulto necessário (ou causa mortis)
Diaulas Costa Ribeiro
Promotor de Justiça Professor Universitário
Todo final de ano é comum o decreto presidencial de indulto, associado às comemorações cristãs do Natal. Em alguns casos o Indulto de Natal se transformava em indulto de carnaval, da semana santa ou dos festejos juninos, ante a dificuldade material de se preparar e decidir todos os pedidos entre a sua publicação e o 25 de Dezembro. No governo de Itamar Franco, entretanto, houve uma inovação; o decreto de 1993 foi publicado em 11 de Outubro e o do ano passado no dia 16 de Setembro, com prazos razoáveis para serem aplicados a todos os destinatários do benefício.
Disse uma inovação e corrijo-me. Houve mais do que a simples antecipação das datas. O presidente, por iniciativa do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, instituiu no nosso sistema jurídico o indulto necessário para perdoar «o condenado que se encontre em estágio avançado ou terminal de doença grave e incurável», independente da quantidade de pena imposta ou já cumprida; do bom comportamento no cárcere e das condições pessoais para a reinserção social.
A solução adotada não é fruto exclusivo da tendência cada vez maior de se ampliar os beneficiários do indulto no Brasil, que tem sido a fórmula aparentemente eficaz que os nossos governantes encontraram para reduzir a superlotação do sistema prisional, ao invés de destinar-lhe, de forma suficiente, investimentos para aumentar e melhorar a qualidade das prisões, viabilizando o maior objetivo delas que a recuperação e não a expiação.
Não seria falso dizer que esta última inovação, sob a aparência de uma medida extremamente humanitária, pretendeu também aliviar da responsabilidade pública os presos com doenças graves e incuráveis, em estado avançado ou terminal, o que significa economia. Numa linguagem atualizada essa medida poderia ser chamada de terceirização, considerando que o governo transfere às famílias (terceiros na relação punitiva), com redução de custos, um problema grave e que é seu.
Mesmo antipática às vítimas, classifico a decisão como ‘politicamente correta’. Com a realidade dos nossos presídios e diante da impossibilidade de reversão do seu quadro a curto prazo, tinha razão o Presidente Itamar Franco e o CNPCP. O mais sensato é devolver o preso à sua família. Se a sua saúde está afetada por uma doença grave e incurável, se o seu quadro é irreversível, quase igual ao do sistema penitenciário, o melhor que se faz é entregá-lo ao setor privado. Por sinal, no decreto de 1993 a expressão era doença irreversível, que foi substituída no último por incurável, o que não muda muito. Irreversível ou incurável, em estágio avançado ou terminal, o preso está com os seus dias contados, numa conclusão infeliz mas bastante clara.
Está manifesto que não se teve a intenção de indultar os condenados acometidos por uma simples enfermidade, como não pretendeu o presidente perdoar os presos com Aids (as ocorrências mais comuns) e que ainda estão nas fases toleráveis da doença. Essas situações não caracterizam o final da vida. Mesmo assim, há resistência de alguns setores encarregados da execução do decreto, pairando um sentimento de impunidade e de inutilidade também. Tem-se a impressão que foi perdido o trabalho da polícia, do Ministério Público e do Poder Judiciário, o que juridicamente não tem pertinência.
A indulgência constitucional, sob qualquer argumento, está no limite da competência discricionária do presidente da República, chefe do Poder Executivo federal, que é o titular da pena e do verdadeiro jus puniendi. É o legítimo dono, num conceito privatista. O Ministério Público, visto na sua concepção moderna, fora da estrutura do Ministério da Justiça, é o substituto processual do Poder Executivo na persecução criminal. O Poder Judiciário, por fim, não é o titular da pena e nem é o persecutor, mas um árbitro entre a proposta acusatória, contraditada pelo acusado. Não tem ele poderes para persegui-lo, como não pode ter interesse no resultado da ação penal. Até na fixação dos limites da pena, que deve ser o produto de um pedido qualitativo e quantitativo do Ministério Público, resistido pelo esforço da ampla defesa, deve imperar sua absoluta isenção.
O nosso sistema processual, inadequado aos tempos modernos, ainda coloca o Poder Judiciário como dono, ou, pelo menos, sócio majoritário da pena, quando essa proibição está estampada — noutra situação é óbvio — no artigo 254, inciso VI do Código de Processo. Quem é sócio tem interesse e quem tem interesse no resultado não pode julgar. É uma norma elementar de suspeição.
Para evitar dúvidas, devo esclarecer que os Magistrados Italianos, conhecidos pela “Operação Mãos Limpas’ (Operazione mani pulite) e que ‘perseguem’ criminosos, o fazem no exercício de atividades do Pubblico Ministero. Na Itália, como em quase toda a Europa, o título de Magistrato é comum aos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, havendo uma dubiedade na tradução, principalmente quando se utiliza, como equivalente em português, a palavra juiz. Talvez inspirados em Giovanne Falcone, Antônio Borsellino ou Antônio Di Pietro, três ídolos da magistratura no mundo inteiro, alguns juízes brasileiros continuem fazendo investigações e persecução criminal.
É provável que não tenham essa informação, como é possível o desconhecimento do novo Código de Processo Penal Italiano de 1988 (em vigência desde 25 de Outubro de 1989) e que por tradição tem muita influência além dos limites peninsulares.
Na sua atual sistemática o Ministério Público investiga e acusa; os advogados defendem, os juízes julgam. O presidente da República, chefe do Estado italiano, também concedia indulto mediante delegação da Câmara dos Deputados. A partir da Lei Constitucional de 6 de Março de 1992, essa atribuição passou ao Parlamento, com exigência de quorum de 2/3 dos membros das duas Casas — Senado e Câmara — (Constituição italiana, art. 79). Hoje, o presidente só concede graça e comuta penas (Idem, art. 87). Mesmo assim, os verbos, em italiano ou em português, conjugam a convivência democrática na atividade estatal de fazer a justiça pública: — Cada um no seu lugar.
Concluindo esse breve parêntese, qualquer indignação que o indulto possa produzir nos operadores do Direito Penal não passará de sentimento humano, fora do contexto jurídico. Quando muito é a insistência de algum resquício da vingança privada que não me seduzirá à discussão. Pretendo mesmo analisar o novo instituto que batizei de indulto necessário. Inicio com um exemplo concreto:
— Kleiton de tal se beneficiou do indulto presidencial de 1994 por ser portador do HIV (Aids), estando na última fase, numa escala de I a IV que é adotada como referência internacional e foi estabelecida pelo CDC - Center for Diseases Control (Centro para o Controle de Enfermidades), uma entidade norte-americana.
Diz o Decreto n.º 1.242, de 15 de Setembro de 1994, em seu artigo 1.º, inciso II: “É concedido indulto ao condenado à pena privativa de liberdade que se encontre em estágio avançado ou terminal de doença grave e incurável, comprovado por laudo circunstanciado por médico oficial ou, na falta deste, do médico que o assiste, desde que não haja oposição do beneficiado, dispensados os requisitos do artigo 7.º deste decreto”. (Registro que foi estendido o benefício ao doente em estado avançado; no ano anterior exigia-se o estado terminal).
Kleiton foi indultado com base nesse dispositivo e já está em liberdade. Todavia, há contra ele outras ações penais em curso, não sendo um despropósito indagar se ele corre o risco de retornar ao presídio em razão das futuras condenações, ou se esse mesmo benefício recairá para também extinguir-lhes a punibilidade.
Se afirmativa a resposta, surgem duas outras perguntas: - Há necessidade de uma decisão condenatória (indulto impróprio), ou o decreto incidirá na fase em que as respectivas ações penais estiverem?
Recordo que o indulto atinge a pena, e não o crime ou tampouco a ação penal, beneficiando pessoas que já foram condenadas e efetivamente cumprem privação de liberdade; excepcionalmente, atinge aquelas em gozo de sursis. Contudo, apesar do decreto referir-se ao condenado, o indulto necessário não poderá ficar restrito aos processos com sentenças já transitadas em julgado para o Ministério Público, o que é conhecido como indulto próprio, com efeito ex tunc. Também não seria o caso de se aguardar as futuras condenações pelos crimes praticados até a sua edição, independente das datas em que as sentenças condenatórias forem prolatadas. Seria o denominando indulto impróprio, com efeitos ex nunc, muito comum na mesma Itália, onde, em regra, abrange os fatos praticados até o final do dia da publicação do ato no diário oficial, mas sem tradição no direito brasileiro, que sempre visou os já condenados e presos, confirmando o argumento inicial de que a finalidade do indulto, hoje concedido por ocasião de uma festividade cristã, é desocupar os presídios.
A inovação brasileira do indulto necessário, sem paradigma estrangeiro próximo, não fugiu a essa regra. É de se destacar, ainda, que não se preservou a natureza jurídica do instituto ao concedê-lo à pessoa (ratione personae) e não à pena a ela imposta. Curioso, de igual forma, é que não há data limite para sua vigência ou aplicação, que poderá ser feita enquanto não for revogado formalmente.
Com essas observações, o decreto presidencial exige uma interpretação teleológica. No momento em que perdoou o criminoso por razões de saúde, de piedade mesmo, a medida deve ser extensiva às outras ações penais em curso, impedindo novas condenações. Não teria sentido Kleiton, há poucos dias em liberdade, retornar ao presídio para cumprir uma nova pena por crime anterior e aguardar a indulgência de um futuro Natal, que haverá de contar com a política do novo presidente. Para continuar preso não teria sentido indultá-lo. Além disso, a finalidade humanitária do presidente da República não seria aplicada a uma grande parte dos casos que pretendeu amparar.
Também não seria o caso de executar o decreto como indulto impróprio. Não tem razão aguardar todas as condenações de Kleiton, para que, uma a uma, fossem indultadas no seu tempo. O indulto necessário, devo repetir, não incide sobre a pena, mas sobre a pessoa, não havendo coerência esperar por ela, extinta antecipadamente. Seria esse procedimento uma insensatez. Não bastasse, encontra obstáculo legal. O juiz não pode condenar alguém a uma sanção já extinta. Falta (ou desapareceu) o interesse de agir do Ministério Público, titular da ação penal. O pedido condenatório de pena privativa de liberdade tornou-se, por uma causa externa e intercorrente, juridicamente impossível (CPC, artigo 267, inciso VI). Há, neste caso, de se julgar antecipadamente a lide por aplicação extensiva do Código de Processo Civil.
Logicamente o ineditismo desse indulto deve obstaculizar qualquer medida coercitiva de liberdade a título de prisão provisória (prisão em flagrante, prisão temporária ou prisão preventiva) ou cautelar (prisão por pronúncia ou prisão para recorrer). Se houver alguma constrição em curso, impõe-se a sua imediata suspensão.
Entretanto, se o crime, em tese, for punido com pena pecuniária alternativa, a ação penal pode ser instaurada ou ter prosseguimento para este fim exclusivo, ou seja, imposição de pena de multa, que não poderá ser substituída por privação de liberdade diante de uma eventual inadimplência. Este indulto não abrangeu a pena pecuniária. O mesmo ocorrerá, hipoteticamente, se for cabível a substituição por pena restritiva de direitos, o que ao meu ver não faria muito sentido. Em qualquer caso, repito, não cabe privação de liberdade. É elementar dizer que não se prende preventivamente quem não o será, nem em tese, definitivamente. Falta o fumus boni juris. Se a pena de prisão não pode consistir num tratamento contrário ao senso de humanidade, a prisão provisória também não. Na medida em que o Presidente conceituou ‘tratamento contrário ao senso de humanidade’ para a pena definitiva, impõe-se aplicá-lo ao encarceramento antecipado.
Se do crime houver dano patrimonial a ser indenizado, a extinção da punibilidade não impedirá que a vítima, ainda que seja o próprio Estado, pleiteie a reparação numa ação civil, como ocorre na prescrição da pretensão punitiva (prescrição da ação penal).
Como esse indulto é ratione personae, não tem sentido contextual negá-lo com base no artigo 8.º do mesmo decreto, que veda qualquer tipo de benefício aos que praticaram crimes hediondos. Esse artigo não está adequado à inovação apresentada, apesar da proibição, originariamente, constar da Lei 8.072/90. O tratamento humanitário adotado leva em conta a situação atual do preso (status quo) e não o seu passado (status quo ante). Se na vida os criminosos são diferentes, na morte são todos iguais (Constituição Federal, art. 5.º). Destaco que a Constituição Federal não proíbe o benefício do indulto aos autores de crimes hediondos. Proíbe a graça e a anistia, que com ele não se confundem (Idem, art. 5.º, XLIII).
A lei dos crimes hediondos, por ser anterior à inovação comentada, não a levou em conta, instaurando-se um conflito aparente de normas a ser resolvido pelo bom senso, no mínimo. O inciso II, ao dispensar os requisitos do artigo 7.º ficaria completo e mais apropriado se também incluísse o artigo 8.º. Se a iminência da morte foi o argumento para se perdoar, manter preso o moribundo que cometeu os crimes mencionados neste artigo não deixa de ser uma forma de vingança privada, feita pelo Estado. Relembre-se que o requisito subjetivo indicado no Decreto foi o estado atual de saúde do preso. Negar-lhe o mesmo benefício concedido a alguém em idênticas condições de saúde é uma discriminação que fere, como já disse, o princípio constitucional da igualdade.
Com essas considerações, ao meu ver suficientes, desapareceu o interesse de agir do Ministério Público nas ações penais que estão em curso contra Kleiton. Como não há previsão legal de pena pecuniária, está extinta a punibilidade de todas elas aplicando-se o disposto no artigo 107, inciso II, do Código Penal.
Parece-me, para de vez concluir, que o Presidente Itamar Franco, ao conceder o indulto necessário por sugestão do CNPCP, sem esquecer os interesses do Estado sensibilizou-se com a solidão da morte, dando a esse momento a dignidade e a família que muitos indivíduos recusaram em vida. Poderia, pois, sendo fiel aos seus sentimentos, chamá-lo também de indulto causa mortis.
Espero que no Decreto de Indulto de 1995 o Presidente Fernando Henrique mantenha esse instituto, aperfeiçoando-o. Sua extensão e utilidade seriam maiores se fossem resolvidas essas pendências, evitando-se discussões estéreis. Enquanto os juristas ficam presos aos preciosismos acadêmicos, os outros presos morrem presos!
Copyright ©1995
[1] Texto básico da aula magna proferida no dia 13/03/95, na OAB-DF, aos bacharelandos em Direito da UDF, turma Primus inter pares.
[2] A tese sustentada neste estudo foi acolhida pela 6.ª Vara Criminal de Brasília nos processos números 3466/90 e 3726/91. Tomou-se o cuidado de preservar a intimidade do envolvido alterando o seu nome no exemplo mencionado.
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