Habeas-Corpus no Brasil: casos concretos
Diaulas Costa Ribeiro
Promotor de Justiça Professor Universitário
Introdução. Casos julgados: - Habeas-corpus impetrado pelo próprio Ministério Público em favor do réu, contra condenação transitada em julgado. - Habeas-corpus substitutivo de recurso especial. - Habeas-corpus impetrado em favor do ex-Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira. - O fim da presunção de violência nos crimes sexuais. - Nulla poena sine lege. A detração (desconto) de pena ilegal.
I - INTRODUÇÃO.
A incumbência que recebi do Prof. Germano Marques da Silva foi de uma indicação prática de habeas-corpus (HC), destacadamente os casos que foram distribuídos à assistência, agora transcritos em notas de rodapé. Impetrei o primeiro na condição de Promotor de Justiça[3]. O paciente[4] foi um réu, cuja acusação fora por mim promovida até o trânsito em julgado da sentença. Impetrei o segundo, ainda como advogado, para restabelecer uma decisão absolutória que fora cassada e reenviada a um outro julgamento, resultando numa condenação. O terceiro tem um significado histórico. Foi impetrado pelos advogados Heráclito da Fontoura SOBRAL PINTO e Cândido de Oliveira Neto, em favor do paciente Juscelino Kubistcheck de Oliveira, ex-presidente da República, logo no início da regime militar instalado pelo golpe de 1964.
Destacarei ainda outros casos atuais, julgados pelos tribunais brasileiros há menos de 3 anos, e que variam da declaração incidental de inconstitucionalidade de lei ao reconhecimento de pena fixada sem previsão legal, ainda que prevista na Constituição Federal (CF), e que foi, afinal, descontada da condenação, suprindo uma lacuna que não poderia, só por esta razão, prejudicar os condenados. Tudo em sede de habeas-corpus.
Não posso deixar, antes desses relatos, de registrar a grande importância do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no revigoramento do habeas-corpus no Brasil. É verdade que por um equívoco do Constituinte foi mínima a alteração da competência do Supremo Tribunal Federal (STF) que continua julgando habeas-corpus contra decisões dos Tribunais de Justiça (Relações dos Estados membros - TJ) e dos Tribunais Regionais Federais (Relações federais - TRF), quando, pelo critério geral de competência, e até pela lógica do sistema judicial, caberia ao Superior Tribunal de Justiça fazê-lo. Contudo, a figura do habeas-corpus substitutivo dos recursos ordinários (conhecido como RHC - Recurso de habeas-corpus) e especial (REsp.) - surgido de uma construção jurisprudencial - acabou permitindo ao STJ uma competência muito mais ampla do que a prevista no texto constitucional. De um acórdão proferido por uma turma, seção ou plenário de um TJ ou de um TRF, cabe recurso ordinário ou recurso especial, conforme o caso, para o Superior Tribunal de Justiça (C.F. art. 103, II, a); e III)[5]. Contudo, se em vez do recurso ordinário ou especial, ou mesmo concomitantemente a eles e com o mesmo objeto, for interposto um habeas-corpus, a competência para julgá-lo continuará sendo do STJ. Como sua tramitação é muito mais rápida do que a de um recurso, é comum essa opção. Se a concessão da ordem atingir plenamente a sua finalidade, o recurso ficará prejudicado. Ao contrário, se não o for em substituição aos recursos ordinário ou especial, a competência para julgamento de habeas-corpus interposto contra decisão de turmas, seções ou plenário desses mesmos tribunais será do STF[6] . Para adiantar, o habeas-corpus que impetrei na condição de Promotor de Justiça buscava desconstituir uma decisão condenatória transitada em julgado no Tribunal de Justiça de Brasília, não sendo, obviamente, substitutivo. Foi julgado pelo Supremo Tribunal Federal. O que impetrei como advogado o foi na pendência do recurso especial que seria julgado pelo STJ. Na sua condição de substitutivo deste recurso, foi julgado pelo mesmo STJ. Como a ordem foi concedida, o REsp. perdeu o objeto.
Antes de prosseguir, e para não deixar dúvidas, o STF como suprema corte brasileira, também julga habeas-corpus contra decisões das turmas e do plenário do próprio STJ e ainda do Superior Tribunal Militar e do Tribunal Superior Eleitoral (raríssimos). Inclusive, no habeas-corpus denegado pelo STJ é cabível o RHC ao Supremo Tribunal Federal, podendo o interessado impetrar diretamente um habeas-corpus substitutivo. O resultado será o mesmo, valendo todas as observações já feitas.
II - CASOS JULGADOS.
PRIMEIRO:
Habeas-corpus impetrado pelo próprio Ministério Público em favor do réu, contra condenação transitada em julgado.
(Revista Trimestral de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, Brasília, 143:628-633 - Fev. 1993)
Este caso tem como personagens dois acusados de homicídio. Kênedes, o autor, esfaqueou a vítima, enquanto Ailton, o partícipe, com o corpo, obstruiu-lhe a fuga que poderia salvá-la. Processados regularmente, ambos foram pronunciados.[7] Levados ao Tribunal do Júri de Taguatinga, uma cidade satélite de Brasília, houve a separação dos julgamentos. O primeiro a ser julgado foi Kênedes, que acabou absolvido. O Tribunal entendeu por 5 votos a 2 que não houve crime, acolhendo a tese defensiva da legítima defesa, uma excludente de ilicitude. É dispensável dizer que não concordei com esse veredito. Interpus o cabível recurso de apelação ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal, certo de que a decisão seria cassada e reenviado o caso a novo julgamento. Não havia, nessa perspectiva, impedimento para julgar o partícipe Ailton, o que ocorreu em seguida. Julgado, foi condenado. A defesa também não concordou e recorreu na esperança de que esta decisão seria cassada, para que houvesse, igualmente, outro julgamento.
Como atrasaram os preparativos para processar o primeiro recurso, o certo é que foram julgados simultaneamente pela 2.ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça, que teve, nos dois casos, a mesma composição, ou seja, os dois recursos foram julgados pelos mesmos desembargadores. O ineditismo (melhor diria, o absurdo) das decisões dos jurados, que no Brasil julgam secretamente e, por conseqüência, não motivam as decisões, foi mantido pelo Tribunal. Kênedes teve sua absolvição confirmada e Ailton foi definitivamente condenado. Ambas as decisões transitaram em julgado, valendo relembrar que a absolvição do autor fora por legítima defesa. Em português claro, isso significava dizer que a conduta principal fora lícita. Significava dizer que o Tribunal de Justiça admitiu uma participação criminosa numa conduta lícita. Ou seja, um equívoco elementar. Um erro típico dos bancos escolares como viria a classificá-lo o Supremo Tribunal Federal.
Após o trânsito em julgado, os autos do processo retornaram-me para providenciar a carta de sentença para a execução da pena. Foi nesta oportunidade que tomei conhecimento das decisões do Tribunal de Justiça. Em seguida impetrei o habeas-corpus, afinal julgado em 15 de Dezembro de 1992. O teor da impetração, pela sua objetividade, consta do acórdão do Supremo Tribunal Federal, relatado pelo Ministro[8] Francisco Rezek, integralmente transcrito para que se tenha uma idéia do seu processamento. Há, para complementar, uma curiosidade. Até a Constituição de 1988 havia o entendimento de que os Promotores de Justiça não podiam fazer sustentações orais (defesas orais) no Supremo Tribunal Federal, onde todas as sessões são públicas. Entendia-se que o Ministério Público perante suas turmas e plenário era exclusivamente o Procurador-Geral da República e seus Adjuntos. Nesse habeas-corpus requeri, fundamentadamente, que me fosse autorizado fazer a defesa oral das razões da impetração. A 2.ª Turma, à unanimidade, autorizou-me, quebrando uma tradição de algumas décadas. A ordem foi concedida para cassar a condenação de Ailton, e como no Brasil não há revisão criminal pro societate, nada pôde ser feito contra a absolvição de Kênedes. [9]
SEGUNDO CASO:
Habeas-corpus substitutivo de recurso especial.
(Revista do Superior Tribunal de Justiça, Brasília, 2(5):136-142 - Jan. 1990)
Edgar Pereira Lima envolveu-se numa disputa amorosa com seu irmão, vindo a matá-lo. Foi processado por homicídio qualificado. Pronunciado, foi julgado pelo mesmo Tribunal do Júri de Taguatinga e absolvido por uma maioria de 4 votos a 3. O Ministério Público, representado pelo digníssimo Dr. Heraldo Machado Paupério, de quem, anos depois, tornei-me colega na Promotoria, não aceitou a decisão e recorreu ao Tribunal de Justiça alegando que a decisão absolutória era contrária à prova dos autos. Pelo princípio brasileiro da soberania das decisões tomadas pelo Tribunal do Júri, os Tribunais de Justiça não podem alterar a decisão de mérito. Não podem reverter uma condenação ou uma absolvição. Nestes casos, operam como corte de cassação e se entenderem que a decisão Popular foi «manifestamente» contrária à prova produzida, cassam-na e reenviam o caso a novo julgamento, o que será feito por outros jurados. No novo julgamento, qualquer que seja a decisão ela não poderá ser submetida a o utro recurso para avaliar provas. Admitindo-se, por exemplo, uma primeira decisão absolutória, a segunda pode confirmá-la ou não. Será indiferente e não haverá outro recurso para avaliar o concerto da prova com a veredito.
Foi o que aconteceu e nessa oportunidade, muito antes de ingressar no Ministério Público, fui seu advogado. O Tribunal de Justiça do Distrito Federal, numa decisão também por maioria de 2 votos a um, cassou a absolvição, submetendo-o a novo julgamento. Por ter sido essa decisão contrária ao acusado, houve um recurso para o plenário do Tribunal chamado embargos infringentes. Opostos esses embargos, a cassação foi mantida por maioria. Sem outras alternativas, adveio o segundo julgamento que resultou numa condenação de 5 anos de prisão, também por maioria.
Faço aqui um parêntese para registrar que o então Presidente do Tribunal do Júri era o Juiz Augusto José Alves, o primeiro português a ingressar na magistratura brasileira valendo-se do estatuto de igualdade luso-brasileiro. Por uma feliz coincidência, é primo do nosso vice-reitor, D. Manuel Isidro Alves.
Como não era cabível recurso para discutir as provas, recorri contra o quantum da pena. Também argüi uma nulidade qualquer. Denegado este recurso, impetrei um habeas-corpus. Estávamos no ano de 1989. O STJ, criado pela Constituição de 1988 em substituição ao antigo Tribunal Federal de Recursos, acabava de ser instalado e por esta razão foi o habeas-corpus n.º 10. Hoje já são alguns milhares.
As razões da impetração merecem ser contadas. As minúcias têm em conta o presumido desconhecimento que o leitor possa ter do nosso sistema processual. Assim, para se resguardar a soberania das decisões do Tribunal do Júri, determina o CPP que a cassação pelo Tribunal de Justiça só possa ocorrer, em matéria probatória, quando a decisão for «manifestamente contrária à prova dos autos». Minha sustentação foi mais etimológica do que jurídica. Afirmei que o advérbio «manifestamente» não tolerava decisões por maioria. Se no Tribunal do Júri tudo é possível porque não há motivação, no Tribunal de Justiça não pode valer a mesma regra. Logo, argumentei que os Tribunais de Justiça só poderiam cassar as decisões do júri, em casos de prova, por unanimidade. O que permite dúvida, não é manifesto. O que é manifesto não tem dois lados, não admite duas versões. Ou é, ou não é. Insisti que na turma a decisão fora por maioria de dois a um. O voto vencido tinha tantos argumentos quanto os vencedores. No plenário, quando do julgamento dos embargos infringentes, também não houve unanimidade. A conclusão era que o Tribunal feriu a soberania do júri cassando um veredito que tinha amparo na prova. Não era manifestamente contrário a ela.
A decisão, no resumo, foi favorável. O Superior Tribunal de Justiça cassou a decisão proferida no segundo julgamento; cassou o acórdão proferido no julgamento dos embargos infringentes; cassou o acórdão proferido na apelação do Ministério Público (a que submeteu o acusado a novo julgamento), e, finalmente, restabeleceu aquela primeira decisão tomada por 4 a 3 que absolveu o acusado.[10]
TERCEIRO CASO:
Habeas-corpus impetrado em favor do ex-Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira.
(Grandes julgamentos de 1964)
O regime militar instaurado em 31 de Março de 1964 cassou os direitos políticos de várias personalidades, destacando-se o ex-presidente Juscelino Kubitschek, o construtor de Brasília. JK exilou-se na Europa, retornando em Outubro de 1965. Ainda no aeroporto do Rio de Janeiro (Galeão), chegando de Lisboa, foi intimado a prestar depoimento num Inquérito Policial Militar (IPM). Ao cumprir esta primeira intimação sobre as atividades do Partido Comunista, foi logo intimado para um outro, chegando ao absurdo de 60 horas de interrogatórios, alguns deles com 11 horas ininterruptas.
Indignado com esses fatos, o advogado Sobral Pinto, notório pela defesa de presos políticos e perseguidos pelo fascismo getulista, dentre eles o Capitão Luís Carlos Prestes, impetrou, em companhia do Dr. Cândido de Oliveira Neto, um habeas-corpus perante o Supremo Tribunal Federal em favor do ex-Presidente. No auge da repressão do governo Castelo Branco a coragem do Dr. Sobral tomou lugar na história brasileira. O Supremo não chegou a julgar o pedido porque as alegadas coações encerraram-se. Contudo, a transcrição integral do pedido, classificado como um dos “Grandes Julgamentos de 1964” não poderia ficar fora desta exposição. O documento dispensa qualquer outro comentário. Registro, apenas, que tem mais de 30 anos. [11]
ÚLTIMOS CASOS.
1. O fim da presunção de violência nos crimes sexuais.
(Diário de Justiça da União, Brasília, 8 de Agosto de 1994; e Serviço de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal - 2.ª Turma, 15 de Maio de 1996).
Por fim, há mais dois casos que irei comentar. O primeiro trata da presunção de violência nos crimes sexuais. No Brasil, as pessoas com menos de 14 anos são presumidamente violentadas quando têm conjunção carnal (estupro/violação) ou qualquer outro ato libidinoso (atentado violento ao pudor), mesmo consentindo nessas relações. Em 14 de Junho de 1994 o STJ, ao julgar o Resp. 46.424-2, relatado pelo Ministro Cernicchiaro,[12] entendeu ser inconstitucional qualquer lei penal que despreze a responsabilidade penal subjetiva, impugnando, pela primeira vez, a presunção de violência nos crimes sexuais. Nesta semana (na semana em que esta conferência foi proferida, precisamente na terça-feira, 14/05/96), o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o habeas-corpus n.º 73.662/9, de Minas Gerais, Relatado pelo Ministro Marco Aurélio, decidiu que «nos nossos dias não há crianças, mas moças de 12 anos». Desta forma, confirmou a decisão anterior do STJ, e também pôs abaixo a presunção violência, em via de habeas-corpus.[13]
2. Nulla poena sine lege. A detração (desconto) de pena ilegal.
(Serviço de Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça - 6.ª Turma).
O outro caso encerrará esta exposição. No processo dos «banqueiros do jogo do bicho» do Rio de Janeiro, a Juíza que presidiu o julgamento do grupo de 14 acusados, aplicou-lhes, 6 meses antes da sentença condenatória, uma restrição de liberdade, limitando-lhes o direito de ir, vir e ficar ao território do município do Rio de Janeiro. Obrigou, ainda, que quinzenalmente todos eles comparecessem ao seu gabinete, em dia e hora marcados, para assinarem um livro de presença. Durante esse semestre vários pedidos de saída do limite marcado, quer para viagens a outras localidades nacionais, quer para viagens ao exterior, foram indeferidos.
Relembro que a Constituição brasileira indica, em numerus clausus, quais são as penas aplicáveis. São elas a privativa ou restritiva de liberdade, a suspensão ou interdição de direitos, a multa e a prestação social alternativa. Contudo, não há, entre nós, qualquer lei regulamentado a restrição de liberdade. Mas há, no artigo 42 do Código Penal, a obrigação de se descontar (detração penal) da pena defintiva o período de prisão preventiva.
Assim, após a condenação dos 14 acusados, o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar um habeas-corpus impetrado por eles, decidiu que, mesmo não havendo pena e nem prisão preventiva restritivas de liberdade, elas existiram. Foram aplicadas pelo Estado-Juiz e cumpridas pelos acusados. Por conseqüência, tinham eles o direito ao desconto desse período. Isto foi feito e os 6 meses foram considerados tempo efetivo de prisão.
Fico por aqui. Creio ter escolhido alguns casos pontuais de habeas-corpus, esperando ter atendido às espectativas destas «Conferências sobre Processo Penal em Homenagem ao Professor Doutor Manuel Cavaleiro de Ferreira». Uno-me, com esta modesta contribuição, à justíssima homenagem que se presta à sua memória.
Agradeço ao Professor Germano Marques da Silva a gentileza do convite. Agradeço ao Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro por ter aceito participar, também agora, desta minha exposição. Last but not least, o meu agradecimento ao Professor José Moutinho, que, de forma competente e cavalheiresca, presidiu a sessão.
[1] Conferência proferida no dia 17 de Maio de 1996. Os documentos transcritos em notas de rodapé foram distribuídos à assistência na oportunidade.
[2] Promotor de Justiça em Brasília e Professor de Direito Penal na UDF - Universidade do Distrito Federal. Doutorando na Universidade Católica Portuguesa sob orientação do Professor Doutor Germano Marques da Silva.
[3] Promotor de Justiça é o título dos membros do Ministério Público dos Estados e do Distrito Federal que oficiam perante os juízos de primeira instância. Perante os Tribunais de Justiça (Relações) são denominados Procuradores de Justiça. Sendo o Brasil uma federação, o título correspondente na União é Procurador da República. Quer com um nome (Promotor) ou com outro (Procurador da República), o cargo equivale ao Procurador da República em Portugal, não havendo a figura do Delegado. Isto porque não há hierarquia funcional nem institucional no Ministério Público brasileiro.
[4] Há uma terminologia própria para o habeas-corpus. O verbo é «impetrar», comum aos demais remédios constitucionais (mandado de segurança e habeas-data). A autoridade contra quem o habeas-corpus é impetrado denomina-se «autoridade coatora» ou «impetrado/a». A vítima da coação, que será beneficiada com a concessão da ordem, é o «paciente». O autor da ação denomina-se «impetrante», que pode ser qualquer indivíduo (não é necessário, sequer, ser cidadão, o que pressupõe o exercício dos direitos políticos), inclusive o próprio paciente. Desta forma, há, sempre, a autoridade judicial (Juiz ou Tribunal) a quem é pedida a ordem; o impetrante, que pede a ordem. O paciente, que será favorecido por essa ordem; e a autoridade coatora, que produziu ou está na iminência de produzir uma lesão ao direito de locomoção (ir, vir e ficar) do paciente.
[5] Constituição Federal de 5 de Outubro de 1988:
Art. 105 - Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
I - processar e julgar, originariamente:
a) nos crimes comuns, os Governadores dos Estados e do Distrito Federal, e, nestes e nos de responsabilidade, os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais;
b) os mandados de segurança e os habeas data contra ato de Ministro de Estado ou do próprio Tribunal;
c) os habeas-corpus, quando o coator ou o paciente for qualquer das pessoas mencionadas na alínea a, ou quando o coator for Ministro de Estado, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral;
d) os conflitos de competência entre quaisquer tribunais, ressalvado o disposto no Art.102, I, o, bem como entre tribunal e juízes a ele não vinculados e entre juízes vinculados a tribunais diversos;
e) as revisões criminais e as ações rescisórias de seus julgados;
f) a reclamação para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões;
g) os conflitos de atribuições entre autoridades administrativas e judiciárias da União, ou entre autoridades judiciárias de um Estado e administrativas de outro ou do Distrito Federal, ou entre as deste e da União;
h) o mandado de injunção, quando a elaboração da norma regulamentadora for atribuição de órgão, entidade ou autoridade federal, da administração direta ou indireta, excetuados os casos de competência do Supremo Tribunal Federal e dos órgãos da Justiça Militar, da Justiça Eleitoral, da Justiça do Trabalho e da Justiça Federal;
II - julgar, em recurso ordinário:
a) os habeas-corpus decididos em única ou última instância pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão for denegatória;
b) os mandados de segurança decididos em única instância pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando denegatória a decisão;
c) as causas em que forem partes Estado estrangeiro ou organismo internacional, de um lado, e, do outro, Município ou pessoa residente ou domiciliada no País;
III - julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida:
a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência;
b) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face de lei federal;
c) der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal.
[6] Constituição Federal de 5 de Outubro de 1988:
Art. 102 - Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I - processar e julgar, originariamente:
(...) i) o habeas-corpus, quando o coator ou o paciente for tribunal, autoridade ou funcionário cujos atos estejam sujeitos diretamente à jurisdição do Supremo Tribunal Federal, ou se trate de crime sujeito à mesma jurisdição em uma única instância.
[7] No sistema brasileiro não há juiz de instrução, exceto nos processos de crimes dolosos contra a vida (homicídio, infantício, aborto e indução, instigação e auxílio ao suicídio) em que há uma fase de instrução judicial, com ampla defesa, que pode resultar na pronúncia. O sistema é muito parecido com o português e havendo pronúncia, o julgamento final será perante o Tribunal do Júri, com toda a repetição da instrução. Os debates são orais e as provas colhidas são sempre escritas, em qualquer das fases. Para completar, em todos esses crimes - e só para eles - o julgamento pelo Júri é obrigatório.
[8] O título de Ministro, no Poder Judiciário brasileiro, equivale ao de Juiz Conselheiro no sistema português. Não é adotado pelo Ministério Público, limitando-se aos membros dos tribunais superiores que são o Supremo Tribunal Federal, como cúpula do Poder Judiciário nacional, o Superior Tribunal de Justiça, o Tribunal Superior do Trabalho, o Tribunal Superior Eleitoral e o Superior Tribunal Militar.
[9] HABEAS-CORPUS N° 69.741—DF (Segunda Turma)
Relator: O Sr. Ministro Francisco Rezek.
Paciente: Ailton Barbosa de Oliveira.
Impetrante: Diaulas Costa Ribeiro.
Coator: Tribunal de Justiça do Distrito Federal.
Habeas-corpus. Júri. Co-autoria. Absolvição do autor e condenação do partícipe. Nulidade. Extensão dos efeitos absolutórios.
Homicídio. Reconhecimento, em favor do autor, de legítima defesa. Condenação, entretanto, do partícipe, em julgamento separado. A participação penalmente reprovável há de pressupor a existência de um crime, sem o qual descabe cogitar de punir a conduta acessória.
Habeas-corpus concedido, com anulação da condenação e extensão dos efeitos absolutórios resultantes do julgamento do autor.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, à unanimidade de votos, em anular a condenação imposta ao paciente, estendendo-se a ele a decisão absolutória do Tribunal do Júri, prolatada quando do julgamento do co-réu Kênedes Sousa Félix. Determinou-se a imediata expedição de alvará de soltura em favor do paciente Ailton Barbosa de Oliveira, se por al não houver de permanecer preso.
Brasília, 15 de Dezembro de 1992 - Néri da Silveira, Presidente - Francisco Rezek, Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Francisco Rezek: Este habeas-corpus, impetrado pelo Promotor de Justiça que oficiou na acusação do paciente ante o júri de Taguatinga, insurge-se contra decisão do Tribunal de Justiça do DF pelos motivos assim expostos na inicial:
«I - O Ministério Público ofereceu, em 25 de Março de 1991, denúncia contra Kênedes Souza Félix (primeiro denunciado) e Ailton Barbosa de Oliveira (segundo denunciado). Conforme a denúncia, no dia 12 de Março de 1991 o l.º acusado esfaqueou e matou Isaias Gomes de Oliveira. O segundo acusado concorreu para o crime, visto que, no momento da facada, impediu, obstruindo com o corpo, que a vítima fugisse. Foram enquadrados no artigo 121 do Código Penal. O l.º como autor e o segundo como partícipe (cúmplice).
II - Processados regularmente, foram pronunciados e libelados nos termos da denúncia. Marcado o julgamento para o dia 17 de Setembro de 1991, houve a separação na forma do artigo 461 do CPP. Kênedes Souza Félix, o autor da execução, foi absolvido com o acolhimento da legítima defesa própria. Ailton Barbosa de Oliveira, o partícipe, foi julgado em 12 de Novembro de 1991 e condenado. O Ministério Público recorreu da absolvição de Kênedes e a defesa recorreu da condenação de Ailton. Ambos os recursos, alegando decisões manifestamente contrárias à prova dos autos, foram improvidos pela 2.ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal.
III - Independentemente da soberania constitucional das decisões do Tribunal do Júri, a autoridade coatora não poderia ter permitido absurda contradição entre as duas decisões. Se o autor agiu em legítima defesa, não praticou crime. Logo, a participação do paciente não pode ter relevância penal. Há de se esclarecer que os dois recursos foram julgados em datas próximas, sendo que o primeiro foi lembrado pelo Des. Carlos Augusto Faria, quando do julgamento do segundo. Poderia, portanto, ter sido concebida uma melhor decisão.
IV - A participação (prevista no artigo 29 do Código Penal) é, necessariamente, acessória, segundo Bockelmann, ou seja, depende da existência de um crime principal. Diz o Código: “Quem, de qualquer modo, concorre para o crime, incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade. Essa acessoriedade não é produto da lei. Ela está na própria natureza dos fatos. A cumplicidade pressupõe um crime ao qual se vinculam duas ou mais pessoas. Não havendo crime na ação principal do autor, não há que se falar em participação criminosa.
V - Pela Teoria Finalista é possível haver participação quando o autor é isento de culpa ou de pena. Mas essa não é a hipótese ocorrida. No caso não houve crime (CP, artigo 23 «Não há crime quando o agente pratica o fato em legítima defesa») .
VI - Segundo Heleno Fragoso, «a participação está em função da conduta típica realizada por outrem. Em si mesma, a participação se realiza através de conduta penalmente irrelevante, que acede ao fato principal, adquirindo relevância somente quando, pelo menos, o autor inicia a execução. A participação, é, pois, contribuição ao crime realizado por outrem». Não havendo crime, conclui-se, não há participação a ser punida.
VII - Diante da manifesta ilegalidade do resultado produzido pelo antagonismo das decisões tomadas pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal, já transitadas em julgado, e a imutabilidade da absolvição do autor Kênedes, não há outro remédio senão a absolvição, também, do paciente. Na opinião deste Promotor, que funcionou nos dois julgamentos do Tribunal do Júri, se a absolvição do autor (Kênedes) tivesse sido mantida pelo Tribunal de Justiça antes de se julgar o paciente Ailton, não caberia, sequer, a sustentação do libelo com relação a este. A extensão deveria ser automática e concedida de oficio pelo próprio Tribunal de Justiça. A contradição só aconteceu porque esperava o Ministério Público a reforma da primeira decisão, sendo surpreendido com a sua manutenção.
VIII - Seria cômodo deixar a situação no estado em que se encontra, principalmente ante a inércia da defesa. Mas esse não e o comportamento que deve ter aquele que recebeu da Constituição a titularidade da ação penal e a incumbência de fiscalizar a aplicação das leis. É também uma questão de consciência pessoal do acusador.
Ante o exposto, Senhor Ministro Presidente, demonstrada a ilegalidade da condenação imposta ao paciente, espera o impetrante seja concedida a ordem para anular o acórdão n.º 57.192/92 (proferido no julgamento da apelação n.° 11.849/ 91) editado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal através da sua 2.ª Turma Criminal, e que manteve a condenação de Ailton Barbosa de Oliveira. Por conseqüência, requer a retroatividade dessa anulação a todos os atos processuais que diretamente dependam da decisão anulada (sentença condenatória de primeiro grau, decisão de pronúncia, e despacho de recebimento da denúncia) de forma a tornar nula toda a ação penal, proposta contra o partícipe (cúmplice) de uma conduta afinal declarada lícita.
Concedida a ordem, requer a expedição de Alvará de Soltura em favor do paciente, atualmente preso e cumprindo pena no Centro de Internamento e Reeducação da Penitenciária do Distrito Federal».
O Ministério Público Federal manifesta-se pelo conhecimento e concessão da ordem.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Francisco Rezek (Relator): Temos aqui um caso escolar de ilegalidade corrigível por habeas-corpus: sintomático que a ordem tenha sido proposta pelo mesmo membro do Ministério Público que funcionou na acusação. Da mesma forma registro a independência na atuação do promotor que frente ao constrangimento praticado não hesitou em relegar a originária investida acusatória para buscar obter a validade do bom direito. Sobre a espécie assim opina, no essencial, o Subprocurador-Geral da República Mardem Costa Pinto:
«O presente habeas-corpus deve ser conhecido e concedida a ordem para anular o julgamento do paciente .
É que diante da teoria monística adotada por nosso código, que considera o crime como unidade jurídica, apesar da pluralidade de agentes, a participação, que é necessariamente acessória de um ato principal, só tem relevância quando o agente principal pelo menos inicia a execução de um crime: conseqüentemente, se o fato atribuído àquele que executa a ação descrita na figura típica foi considerado legal, em face do acolhimento da tese da legítima defesa, a mera participação não pode ter qualquer repercussão no âmbito do direito penal, já que o fato principal deixou de ser objetivamente ilícito.
Esta aliás é a posição de José Frederico Marques, em face da chamada «teoria da acessoriedade limitada», quando afirma, verbis:
«A participação é acessória de um ato principal, como diz Jimenez de Asúa, e este consiste na prática de ação penalmente ilícita .
As dificuldades que entendem existir os adversários da acessoriedade para a explicação de certos casos de co-delinqüência onde o autor principal não é punível são de todo inexistentes, desde que se fixe que se exige no ato principal a ilicitude a parte objecti, isto é, o fato típico e anti-jurídico. A não punibilidade, do sujeito que realiza os atos típicos a que está subordinada a participação não exclui a antijuridicidade do fato tipificado; e sua punibilidade, desde que haja ilicitude penal a parte objecti, é toda pessoal. Participar de um fato típico praticado no exercício regular de um direito, ou em estado de necessidade, não constitui ato punível porque a ação principal não é objetivamente ilícito. Mas se da parte do autor principal, houve erro de fato, a exclusão de punibilidade por ausência de culpa não exclui a punibilidade do participante, pois houve ilícito penal na ação principal, embora o preceito secundário da norma não possa ser aplicado ao executor». (Curso de Direito Penal, Saraiva, 1966; volume II, páginas 311/312. Grifamos).
O legislador penal separou assim, de forma bem patente, a ilicitude, a parte objecti, da culpabilidade, a antijuridicidade objetiva da relação subjetiva com o fato, isto é, do juízo de valor sobre a culpa em sentido lato.
Se um louco comete um furto, a ilicitude criminal do fato não o torna passível de pena porque a inimputabilidade impede a aplicação de sanctio iuris dessa natureza. Mas se o louco vender a coisa furtada a um terceiro, esta será considerada produto de crime para caracterizar-se o delito de receptação descrito no artigo 180, do Código Penal.
Isto significa que a legislação brasileira perfilhou a doutrina que conceitua a antijuridicidade penal como ilícito objetivo. A cooperação, por exemplo, em ação penalmente justificada (e portanto lícita), nada tem de antijurídica, embora se trate de ação enquadrada em descrição típica. O co-autor, porém, de um fato típico e ilícito, será passível de pena, apesar de o executor da ação típica estar isento de punição por ausência de culpabilidade». (Obra citada, volume 11, página 110. Grifamos) .
No mesmo sentido é a lição de Damásio E. de Jesus, verbis: «Passamos a adotar a teoria da acessoriedade limitada. Como diz Welzel, «para a punibilidade da participação basta que o fato principal seja típico e antijurídico», não se exigindo que seja culpável. Assim, a participação não requer que o autor principal tenha atuado «culpavelmente».
José Frederico Marques também aceita a teoria da acessoriedade limitada, pois, de acordo com a sua lição, a participação «exige no fato principal a ilicitude parte objecti, isto é, fato típico e antijurídico. Para que haja participação basta que a conduta secundária aceda a uma conduta principal que constitua fato típico e antijurídico. Não precisa ser culpável. A simples tipicidade do fato principal (acessoriedade mínima) não é suficiente para a existência da participação. É possível que a conduta do autor constitua fato típico e não responda ele e o eventual partícipe por crime algum. Assim ocorre quando a conduta primária está acobertada por uma causa de exclusão da antijuridicidade (legítima defesa, estado de necessidade, exercício regular de direito e estrito cumprimento de dever legal). Ex: A instiga B a defender-se de uma agressão injusta que está sendo cometida por C. A e B não respondem pelo resultado lesivo produzido em C, pois o fato não é proibido pelo direito. Assim, a participação exige, além da tipicidade do fato principal, a sua ilicitude, isto é, que não ocorra causa de justificação em relação ao autor». (Comentário ao Código Penal, Saraiva, 1985, 1° volume, páginas 524/525. Grifamos)
. . .
«A legítima defesa empregada pelo autor direto exclui a possibilidade de o provocador responder pelo crime de homicídio a título de participação, pois a acessoriedade limitada exige que o fato principal, além de típico, seja antijurídico (a legítima defesa exclui a antijuridicidade» (Obra citada, 1° volume, páginas 525/526. Grifamos).
Se o agente principal foi absolvido, pelo acolhimento da tese da legítima defesa, não se compreende a condenação do partícipe, que teve atuação meramente acessória, podendo-se assim falar em ausência de justa causa.
Se não existe justa causa para a condenação é de se anular a decisão do Júri que condenou o paciente e o acórdão que confirmou a mesma, estendendo-se a ele a decisão anterior do mesmo Tribunal do Júri, e que absolveu o co-réu, agente principal, acolhendo a tese da legítima defesa, solução que inclusive esta de acordo com o que já decidiu o Supremo Tribunal Federal, em caso semelhante, como se vê da ementa a seguir transcrita:
«Júri. Co-autoria. Inexistência de mandato, pois o indigitado mandatário foi até absolvido pela justificativa da legítima defesa, isto é, antes de cometer o crime, exerceu um direito. A decisão do Júri, em relação ao apontado mandatário, transitou em julgado e assim, aproveita ao paciente apontado como mandante. Concessão do habeas-corpus». RTJ 33/809.
A solução apontada, segundo entendemos, não afronta o princípio constitucional que assegura a soberania do júri, desde que prestigia decisão anterior transitada em julgado, prolatada pelo mesmo Tribunal do Júri, sobre o mesmo fato, e que devia ter sido estendida ao paciente, que, como visto, foi condenado sem justa causa.
Pelo exposto, somos pelo conhecimento e concessão da ordem, para anular, por falta de justa causa, a condenação do paciente, estendendo se a ele a decisão absolutória do mesmo Tribunal do Júri, prolatada quando do julgamento do co-réu Kênedes Souza Félix, já que diante da teoria unitária e da acessoriedade limitada da participação, a solução não pode ser outra, expedindo-se em conseqüência, o competente alvará de soltura».
Nada havendo de útil que possa acrescentar ao pronunciamento do Ministério Público Federal, adoto-o como razão de decidir e concedo a ordem nos efeitos ali alvitrados.
VOTO (ADITAMENTO AO VOTO)
O Sr. Ministro Francisco Rezek (Relator): Este caso enaltece a atuação profissional do Promotor impetrante e lembra algo que, não faz muitas semanas, eu buscava enfatizar ante esta Turma: a inteira dimensão constitucional do Ministério Público, que não é um acusador necessário.
Ao mesmo tempo alerta, instrumentalmente, o Tribunal de Justiça para situações constrangedoras como esta que veio à mesa do Supremo. Por último, nos faz de novo refletir sobre o Tribunal do Júri e tudo aquilo que, do veredito popular, pode resultar na prática corrente.
Meu voto, como disse, concede a ordem.
EXTRATO DA ATA.
HC 69.741-1 Rel. Min. Francisco Rezek. - Pacte: Ailton Barbosa de Oliveira. - Impte: Diaulas Costa Ribeiro. - Coator: Tribunal de Justiça do Distrito Federal.
Decisão: Por unanimidade, a Turma deferiu o habeas-corpus, para anular a condenação imposta ao paciente, estendendo-se a ele a decisão absolutória do Tribunal do Júri, prolatada quando do julgamento do co-réu Kênedes de Souza Félix. Determinou-se a imediata expedição de alvará de soltura em favor do paciente Ailton Barbosa de Oliveira, se por al não houver que permanecer preso.
Falou pelo paciente o Dr. Diaulas Costa Ribeiro.
Presidência do Sr. Ministro Néri da Silveira. Presentes à seção os Senhores Ministros Paulo Brossard, Carlos Velloso, Marco Aurélio e Francisco Rezek. Subprocuradora Geral da República Dra. Odília Ferreira da Luz Oliveira.
Brasília, 15 de Dezembro de 1992 - José Wilson Aragão, Secretário. (RTJ 143, Fev.1993, páginas 628-33)
[10] HABEAS-CORPUS Nº 10- DF (Registro nº 89.7274-9):
Relator: O Exmo. Sr. Ministro Carlos Thibau
Impetrante: Diaulas Costa Ribeiro
Impetrado: Des.Presidente da Seção Criminal do Tribunal de Justiça do D. Federal
Paciente: Edgar Pereira Lima
EMENTA: Processual Penal. Júri. Soberania. Versões conflitantes sobre os fatos.
I - Existindo duas versões conflitantes, ambas aceitáveis diante do conjunto probatório, a absolvição decretada pelo Tribunal do Júri, acolhendo uma das versões, não pode ser anulada sob o fundamento de ser manifestamente contrária à prova dos autos.
II- Ordem concedida para anular-se a decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e, em conseqüência, o segundo julgamento.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas.
Decide a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, à unanimidade, conceder a ordem de habeas-corpus, na forma do relatório e notas taquigráficas constantes dos autos, que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Custas, como de lei. Brasília, 26 de Setembro de 1989 (data do julgamento). Ministro WILLIAM PATTERSON, Presidente. Ministro CARLOS THIBAU, Relator.
RELATÓRIO:
O EXMO. SR. MINISTRO CARLOS THIBAU: Em favor de Edgar Pereira Lima foi impetrado habeas-corpus pelo bacharel Diaulas Costa Ribeiro contra acórdão da Seção Criminal do E. Tribunal de Justiça do Distrito Federal, em Embargos Infringentes e de Nulidade, objetivando a anulação dessa decisão, que mandou o paciente a novo júri.
Alega o impetrante: que o paciente, acusado de matar seu irmão a facadas, foi absolvido pelo Tribunal do Júri de Taguatinga, que acolheu a tese de legítima defesa; que, dando provimento a recurso do Ministério Público e entendendo ter sido a decisão manifestamente contrária à prova dos autos, a autoridade impetrada mandou que o paciente se submetesse a novo júri, tendo o acórdão sido confirmado em Embargos Infringentes; realizado novo julgamento, o paciente foi condenado a 5 anos de reclusão, em regime semi-aberto, havendo apelado dessa decisão.
Que o Tribunal a quo reexaminou as provas dos autos, optando por uma das versões existentes e violando o princípio constitucional da soberania do júri.
Informou a autoridade impetrada que os autos encontram-se em grau de apelação, historiando o ocorrido na fase processual, desde a denúncia até o segundo julgamento realizado.
Parecer da douta Subprocuradoria-Geral da República pela denegação da ordem, por inexistir qualquer constrangimento ilegal no novo julgamento.
É o relatório.
VOTO:
O EXMO. SR. MINISTRO CARLOS THIBAU (Relator): O acórdão impugnado está assim ementado:
«Embargos Infringentes Criminais. Acusação de homicídio qualificado. A exclusão da ilicitude por legítima defesa real só deve ser reconhecida se sobejamente provados seus pressupostos necessários.
Inteligência do art. 593, III, do Código de Processo Penal.
Decide manifestamente contra a prova dos autos o Tribunal Popular que absolve acusado acolhendo tese sem fundamento no conjunto fático probatório dos autos».
Já é pacífico o entendimento jurisprudencial de que o disposto no art. 593, III, d, do CPP, não ofende ao princípio da soberania do júri, de tal modo que, em princípio, nada há a reparar na decisão do Tribunal que determina seja o réu submetido a novo julgamento, quando o primeiro for manifestamente contrário à prova dos autos. Para que se caracterize uma decisão manifestamente contrária à prova dos autos basta que ela despreze a única versão existente sobre o fato principal, ou, havendo duas versões, que ela adote exatamente aquela inaceitável, em face do conjunto da prova.
Na hipótese, no entanto, como bem salientou o eminente Desembargador Paulo Garcia em seu voto vencido, existem duas versões, a da fase policial e a da fase judicial. A última autoriza a procedência da decisão absolutória do primeiro júri, com base no depoimento da única testemunha visual, Valéria Aparecida Nascimento da Cruz. A tese de legítima defesa invocada pelo réu em seu interrogatório, em plenário, encontra ressonância nas declarações da referida testemunha, não podendo o Tribunal a quo indagar da justiça ou injustiça da referida decisão, conforme salientou a ilustre Procuradora de Justiça Dra. Marluce Aparecida Barbosa Lima, verbis:
«Quanto ao mérito, não se pode ter a decisão dos jurados como manifestamente contrária à prova dos autos, isto considerando o depoimento da testemunha Valéria Aparecida Nascimento da Cruz, que sofreu substancial modificação da fase policial para a da instrução e em Plenário.
Não foi possível ouvir a testemunha Antônio Vitório Lima, pai do acusado e da vítima. Assim, considerando a modificação do conjunto probatório ocorrida após a fase policial, fato que certamente gerou perplexidade para os jurados, não há na decisão atacada a manifesta contrariedade às provas, exigida por lei, para a cassação da decisão do Tribunal do Júri. Na verdade, não conseguiu demonstrá-la a Promotoria Pública.
Não nos cabe, na oportunidade, indagar se a decisão foi justa ou não. O certo é que refletiu a realidade dos autos, com uma prova bastante contraditória».
Outra não é a jurisprudência do E. STF, consubstanciada nos acórdãos seguintes:
«Se o Tribunal do Júri, pela segunda vez, aceita a versão favorável à defesa e conclui pela absolvição do recorrido pela legítima defesa, o acórdão em apelação, que manda o réu a novo Júri, nega vigência ao art. 593, III, d, do C. Pr. Pen., que só admite apelação das decisões do Tribunal de Júri quando «for a decisão manifestamente contrária à prova dos autos».
No caso, dada a existência de duas versões decorrentes da prova produzida, a proferida pelo Tribunal do Júri, acolhendo uma das versões, não podia ser qualificada de manifestamente contrária à prova dos autos.
Recurso extraordinário criminal conhecido e provido» (RE- nº 71 .879-BA - Julg. em 14-4-72 - Relator Ministro Amaral Santos - 1ª Turma - RTJ 63 - página 150).
«Habeas-corpus. Júri. Absolvição. Código de Processo Penal, art. 593, III, letra d. Não cabe anular a decisão dos jurados, embora tomada por Maioria de votos, se esta não for manifestamente contrária à prova dos autos. Por mera conveniência de nova manifestação de outros jurados, da mesma sociedade, diante de dúvida que exista quanto à inocência do réu, não se anula decisão absolutória. Habeas-corpus concedido, para que o paciente não seja submetido a novo julgamento pelo Júri» (HC nº 59.287-MG - Julg. em 10-11-81 - Relator Ministro Néri da Silveira - 1ª. Turma -RTJ 100, pág. 611).
«Júri. Homicídio. Decisão absolutória, pela excludente da legítima defesa própria, anulada em grau de apelação. Artigo 593, III, d, do CPP.
Valoração da prova. Concluir se a decisão é ou não manifestamente contrária à prova dos autos importa valoração, e não reexame de provas.
Precedentes da Corte.
In casu - existência de duas versões, autorizando o Júri opção válida por uma - a absolutória.
Recurso Extraordinário conhecido e provido» (RE Criminal nº 99.344 - RS - Julg. em 13 de Maio de 1983 - Relator Ministro Oscar Corrêa - 1ª Turma - RTJ 109 - Pág. 338).
Cabe, a propósito, trazer a exame o seguinte trecho do voto lapidar do saudoso Ministro Osvaldo Trigueiro, proferido no RE 78.312-PR, de que foi relator, no Plenário do Colendo STF: «Segundo o art. 593 do C. Pr. Pen., a apelação é cabível quando a decisão for manifestamente contrária à prova dos autos, o que pressupõe inteira falta de apoio nos elementos colhidos na instrução criminal.
Por seu turno, a jurisprudência firmou-se no mesmo sentido. Os Tribunais estaduais têm decidido, reiteradamente, que não lhes cabe julgar da inocência ou culpabilidade do réu, mas apenas verificar se a decisão do tribunal popular está completamente divorciada da prova dos autos. Dessa forma, reserva-se ao Júri a faculdade de apreciar os fatos e de, na hipótese de versões, porventura, discrepantes, optar pela que lhe pareça mais razoável. As várias decisões transcritas no recurso consagram esse entendimento.
Não tem sido diversa a orientação do Supremo Tribunal quanto ao tema. Assim, na Carta Testemunhável nº 11.744 (DJ de 3-10-44, página 4496) decidiu-se de acordo com o voto do relator, o eminente Ministro Orosimbo Nonato: «Convenho em que o poder do Tribunal togado de reformar a decisão do Júri tem marcas e raias cujo alargamento pode convir à política criminal, mas ainda se acha desautorizada em lei.
Não é qualquer desencontro na apreciação de provas que o justifica. Faz-se mister haja o Tribunal do Júri proferido decisão que não encontre qualquer apoio na prova.
De lege lata, apresenta cabal procedência a observação de Espínola Filho: «..... não é tão dilatado, em relação às sentenças do Júri, quanto sucede acerca das do juiz singular, o âmbito do cabimento legal da apelação, nem tão grande o poder de correção do tribunal superior. Se se trata de julgamento feito pelo juiz togado, quer condene, quer absolva, há sempre o recurso para a segunda instância, que aprecia, confronta, pesa o valor das provas, proferindo este ou aquele elemento, dando atenção a uma nuança, desprezando certo elemento, para aceitar, alterar ou reformar a decisão recorrida, segundo deu esta Maior valor a fatores que, na opinião do tribunal, não merecem tanto, ou não apreciou na justa medida o que à segunda instância se afigura de referência máxima.
Quanto ao Júri, não é-lhe assegurado o privilégio de escolher, na prova feita, aquilo a que dispensar consideração, desprezando o mais, tão-somente quando o veredicto do tribunal leigo é arbitrário, porque se dissocia integralmente da prova dos autos, isto é, não há qualquer elemento de prova que ampare, que apoie a solução adotada, surge a possibilidade de, repelindo o arbítrio, entrar o tribunal de recurso no mérito para, reformando a sentença, condenar o injustamente absolvido ou absorver o injustamente condenado». (Código de Processo Penal, vol. V, págs. 433/434).
Destarte, a reforma só se justifica na ocorrência de patente error in judicando o que se verifica - é a lição do eminente Sr. Ministro Bento de Faria - quando a decisão não encontra «apoio algum na prova dos autos» (Código de Processo Penal, vol. II, pág. 194).
Em data mais recente (14-4-72) - no RE 71.879, relatado pelo Senhor Ministro Amaral Santos (RTJ, 63/150) - a Primeira Turma assentou: «Tendo o Tribunal do Júri, pela segunda vez, aceito a versão favorável à defesa e concluído pela absolvição do recorrido pela legítima defesa, negou o Tribunal a quo vigência ao art. 593, III, d, do C. Pr. Pen., que admite apelação das decisões do Tribunal do Júri, quando «for a decisão manifestamente contrária à prova dos autos». Dada a existência de duas versões decorrentes da prova produzida, a proferida pelo Tribunal do Júri, acolhendo uma das versões, não podia ser qualificada de manifestamente contrária à prova dos autos.
Aliás nesse sentido é a jurisprudência deste tribunal, de que é padrão o aresto proferido no RE 37.300 (em Ementário Forense, 1959, Ano XI, nº 130), relatado pelo eminente Ministro Luiz Gallotti, trazido à colação pelo recorrente. Pela doutrina fale por todos Frederico Marques (Elementos de Direito Processual Penal, 1965, 4º vol., pág. 245): «Necessário, no caso, para que o Tribunal ad quem, acolhendo o recurso, lhe dê provimento, é que o veredicto esteja em radical antagonismo com aquilo que, de modo indiscutível, promane, em relação a quaestio facti, da prova dos autos.
Não é qualquer dissonância entre o veredicto e os elementos de convicção colhidos na prova que autoriza a cassação do veredicto: unicamente a decisão dos jurados que nenhum arrimo encontre na prova dos autos é que pode ser invalidada. Desde que uma interpretação razoável dos dados instrutórios justifique o veredicto, deve este ser mantido, pois, nesse caso, a decisão deixa de ser «manifestamente contrária à prova dos autos».
Em casos dessa natureza, não se trata apenas do reexame da matéria de fato, vedado à instância extraordinária. A esse propósito, o voto do Sr. Ministro Luiz Gallotti, no RE 37.300 (RF, CLXXIX/336), esclarece:
«Se se tratasse do julgamento de uma apelação comum, em que o conhecimento da causa se devolve inteiro ao Tribunal Superior, não seria possível conhecer do presente recurso, para decidir se o acórdão recorrido julgara bem ou mal, concluindo por considerar não provada a legítima defesa.
Trata-se, porém, de apelação de sentença do Júri, cabível com o fundamento de que a absolvição seria manifestamente contrária à prova dos autos.
Não se trata, pois, de mera questão de fato ou de prova, como à primeira vista poderia parecer, mas de questão de direito, qual seja, a relativa ao cabimento ou não da apelação».
No caso concreto, é induvidoso que existem duas versões, a da defesa e a da acusação, ambas aceitáveis diante do conjunto probatório.
Em face do exposto, concedo a ordem, nos termos do pedido.
É como voto.
VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO DIAS TRINDADE: Sr. Presidente, entendo que, no caso, tem razão o impetrante, porque está evidenciada a existência de duas versões, e o júri tomando partido por uma delas não foi de encontro à prova dos autos. Poder-se-ia dizer que a versão aceita pelo júri foi colhida na fase inquisitorial do processo e, depois, desfeita na fase contraditória. Mas nós iríamos valorar essa prova; basta que haja a existência de duas versões e o júri tomando partido por uma delas, para justificar a absolvição.
EXTRATO DA MINUTA
HC nº 10 - DF - (Reg. no. 89.7274-9) - Relator: O Exmo. Sr. Ministro Carlos Thibau. Impetrante: Diaulas Costa Ribeiro. Impetrado: Desembargador Presidente da Seção Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Paciente: Edgar Pereira Lima.
Decisão: A Turma, à unanimidade, concedeu a ordem de habeas-corpus, nos termos do voto do Relator (26-9-89).
Votaram os Srs. Ministros Costa Leite, Dias Trindade, Anselmo Santiago (Juiz do TFR/1ª Região, convocado) e William Patterson. Presidiu o julgamento o Sr. Ministro WILLIAM PATTERSON.
[11] HABEAS-CORPUS N.º 42.818 - GUANABARA
Paciente: Juscelino Kubitschek de Oliveira, ex-Presidnete da República e ex-Senador.
Impetrantes: Dr. Heráclito Fontoura Sobral Pinto e Cândido de Oliveira Neto.
Relator: Min. Hahnemann Guimarães.
Heráclito Fontoura Sobral Pinto e Cândido de Oliveira Neto, brasileiros, casados, advogados com escritório na rua Debret n.° 79, 3.º andar, salas 307 a 311, e na Avenida Presidente Vargas n.° 446, 19.ª andar, Grupo 1905, na cidade do Rio de Janeiro, Estado da Guanabara, vêm, com fundamento no art. 141, §23 da Constituição Federal, disciplinado pelos arts. 648, III e VI, e 654, ambos do Código de Processo Penal, impetrar ao Supremo Tribunal Federal a presente ordem de habeas-corpus originário em favor do Dr. Juscelino Kubitschek de Oliveira, brasileiro, casado, médico, domiciliado à Avenida Vieira Souto n.° 206, na cidade do Rio de Janeiro, ex-Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, no quinqüênio de 1955 a 1961, para que cesse a violência ou coação de Inquéritos Policiais-Militares e da maneira pela qual são conduzidos, inquéritos estes presididos, um, pelo Coronel Ferdinando de Carvalho, referente às atividades do Partido Comunista, e que ora é denominado 1.° Coator, com Gabinete a Avenida Presidente Vargas n.° 595 - Conselho de Segurança Nacional; o outro, pelo Coronel Joaquim Victorino Portella Ferreira Alves, referente às atividades do Instituto Superior de Estudos Brasileiros - ISEB, ora denominado 2.° Coator, com Gabinete na Seção de Segurança Nacional do Ministério da Educação e Cultura, tudo na cidade do Rio de Janeiro, para o que passam a expor e a requerer, desenvolvendo a matéria nos capítulos que se seguem:
I
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL PARA O CONHECIMENTO ORIGINÁRIO DO PRESENTE PEDIDO.
1 - Como é público e notório, sendo por isto dispensáveis quaisquer outras provas, pretende-se envolver o Paciente nos Inquéritos Policiais Militares acima referidos, por motivos de atos ou omissões que teria praticado no exercício da Presidência da República, no quinquênio de 1956 a 1961, e que estariam previstos na Lei de Segurança Nacional, n.º 1.802, de 5 de Janeiro de 1953;
2 - Ora, pelos crimes comuns, funcionais ou não, porventura praticados no exercício da Presidência da República, o Paciente por força da prerrogativa de função, que se conserva ainda depois de haver deixado o exercício do cargo, só pode ser processado e julgado, originariamente, pelo Supremo Tribunal Federal, em virtude do disposto no art. 101, I, a, da Constituição Federal;
3 - Ocorre, assim, em toda a plenitude, a hipótese da competência originária do Supremo Tribunal Federal para conhecimento do presente pedido de habeas-corpus, em face do que preceitua o art. 101, I, h, da Constituição Federal que diz: «Ao Supremo Tribunal Federal compete: - processar e julgar originariamente: ...o habeas-corpus, quando o coator ou paciente for Tribunal, funcionário ou autoridade cujos atos estejam diretamente sujeitos à jurisdição do Supremo Tribunal Federal; quando se tratar de crime sujeito a essa mesma jurisdição em única instância; e quando houver perigo de se consumar a violência, antes que outro Juiz ou Tribunal possa conhecer do pedido»;
II
CABIMENTO DE HABEAS-CORPUS CONTRA O CONSTRANGIMENTO DECORRENTE DE INQUÉRITO POLICIAL, SOBRETUDO DE INQUÉRITO POLICIAL-MILITAR.
4 - Mais adiante ficará cumpridamente demonstrado o constrangimento ilegal que está sendo imposto ao Paciente, através dos Inquéritos Policiais Militares acima referidos, mas cumpre, desde logo, salientar que a jurisprudência dos Tribunais é mansa e pacífica ao admitir o habeas-corpus como remédio hábil contra simples inquérito;
5 - Realmente, ainda recentemente, e repetindo numerosas decisões anteriores, o Supremo Tribunal decidiu: «Habeas-corpus. Em casos excepcionais, pode ser concedido para trancar investigação policial... Ordem concedida para fazer cessar o constrangimento a que está submetido o paciente». AC. do Supremo Tribunal Federal, de 18 de Agosto de 1965, no HC 42.538, de S. Paulo. Relator Ministro Evandro Lins. Ementa publicada no Diário da Justiça, de 15 de set. de 1965, pág. 2.402. Também decidiu o TFR: «Habeas-corpus - sua concessão para determinar o trancamento de inquérito policial instaurado sem justa causa» - Ac. do Trib. Fed. de Recursos, no HC 1.344, de São Paulo. Relator Ministro Armando Rollemberg. Ementa publicada no Diário da Justiça de 14 de set. de 1965, pág. 2.391».
6 - Cumpre salientar que, em se tratando de Inquérito Policial-Militar, como no presente caso, ainda mais pertinente será o uso do remédio do habeas-corpus contra constrangimento ilegal ou abusivo, porque, na conformidade do art. 156 do Código da Justiça Militar, e ao contrário do que ocorre com os inquéritos policiais comuns, pode ser decretada a detenção ou prisão do indiciado durante as investigações policiais até 30 dias, prorrogáveis por mais de 20 dias, e isto por meio de simples ato administrativo, sem interferência judiciária;
III
CARACTERIZAÇÃO DO CONSTRANGIMENTO QUE VEM SENDO IMPOSTO AO PACIENTE.
7 - O paciente, em Junho de 1964, quando do exercício do cargo de Senador pelo Estado de Goiás, teve, injustamente, os seus direitos políticos cassados, com base no art. 10 do Ato Institucional;
8 - Na ausência de garantias de qualquer espécie, e temendo sofrer maiores afrontas, ausentou-se, voluntariamente, do País, indo residir na Europa;
9 - Decorridos 16 meses de exílio, resolveu regressar à Pátria, tangido pelas saudades de sua Mãe nonagenária, de suas filhas e netos, e por dificuldades várias, algumas de caráter econômico;
10 - Contribuiu decisivamente para tal regresso a circunstância, alardeada pelas autoridades competentes, de que funcionava no Brasil o regime democrático;
11- Escolheu, para essa volta, a data de 4 de Outubro, quando impossível era atribuírem-lhe intervenção no pleito eleitoral e era absolutamente problemática a vitória deste ou daquele candidato em qualquer dos 11 Estados onde se renovaria o mandato dos respectivos Governadores;
12 - O Paciente, em seu Governo, consoante está na consciência de todos os que habitam o território nacional, sempre deu as mais categóricas provas de equanimidade e Justiça, respeitando os direitos até dos seus mais cruéis adversários, cujos ataques nunca revidou;
13 - Por outro lado sabe, embora sem orgulho, antes com humildade, que não pode dissociar, já agora, de sua pessoa humana, a condição de haver ocupado, durante cinco anos, de plena calma e intenso trabalho em todos os setores da Administração, a Presidência da República, posto máximo a que pode aspirar um homem público brasileiro;
14 - Esperava, por estes vários motivos, encontrar, da parte das autoridades militares incumbidas de inquéritos kafkianos contra a sua fecunda administração, tratamento humano, que não significasse tormento físico e constrangimento à sua liberdade de locomoção em seu País, sobretudo depois de longa ausência;
15 - Enganou-se, no entanto, o Paciente e daí o presente pedido de habeas-corpus, que é obra direta de dois de seus amigos, que sabem estar atendendo mais ao desejo de milhões de outros amigos do que do próprio Paciente;
16 - É que, desde e dia 14 deste mês, quando retornou ao Brasil, desembarcando no Galeão, por volta de 9 horas, o Paciente tem sido atormentado por sucessivas inquirições por parte dos Coatores, as quais, somadas a uma inquirição procedida pelo Coronel Oswaldo Ferraro de Carvalho, encarregado de outro IPM instaurado especificadamente contra o Paciente, atingiram, até o dia 15 do corrente o n.° 9, estendendo-se por longas horas, que já ultrapassam o n.º 60!
17 - É mister salientar que no preciso momento em que o Paciente punha os pés no solo brasileiro, ainda da Estação Internacional do Galeão, recebeu intimações para prestar às 13 horas do dia seguinte ao da chegada, depoimento perante o l.º Coator;
18 - Daí por diante, em seqüência ininterrupta, passaram a revezar-se os dois Coatores nas designações de novos depoimentos a respeito de fatos que toda a Nação Brasileira sabe, seguramente, que são puras fantasias de adversários políticos ou de jornalistas impiedosos, pois ninguém tem dúvidas de que o Paciente, nunca em tempo nenhum, teve qualquer atividade de colaboração com comunistas, os quais sempre o combateram, violentamente, em seu Governo!
19 - Nos dois documentos ora juntos - apenas dois, dentre dezenas de jornais brasileiros que contêm notícias semelhantes - vê-se, nitidamente, o que tem sido a violência contra a pessoa física e contra a liberdade de locomoção do Paciente que, tendo ido a Belo Horizonte, dois dias após a sua chegada, teve de retornar às pressas, deixando sua velha Mãe, enferma, para responder aos IPMs dos Coatores!
20 - No Correio da Manhã, de 16 de Outubro corrente, lê-se:
«JK vai a novo IPM e completa 58 horas depondo.
O ex-Presidente Juscelino Kubitschek prestou, ontem, seu oitavo depoimento em IPMs, completando 58 horas de interrogatórios, ao ser inquirido, pela quarta vez, pelo Coronel Ferdinando de Carvalho, encarregado do IPM do Partido Comunista.
O ex-Presidente chegou às 14 horas e 45 minutos ao Quartel da Polícia do Exército, na rua Barão de Mesquita, na Tijuca, depôs até altas horas da noite, enquanto se informava, em meios militares, que na segunda-feira voltará a depor no IPM do ISEB e depois será convocado pelo IPM da imprensa comunista, do qual é encarregado o Major Kléber Benecker».
21 - Na notícia supra há que notificar somente o seguinte: - O paciente já ultrapassou 58 horas de depoimentos, por isto que, depondo perante o 1.º Coator, desde 15 horas do dia 15 até as duas horas do dia 16 de Outubro, isto é, 11 horas seguidas, totalizou, não 58 horas, mas 60 horas de depoimentos.
22 - É mister acentuar ainda, e com justa indignação, que os Coatores se actam, pela imprensa, de que ouvirão inúmeras outras vezes o Paciente, mantendo-o em verdadeira prisão aberta, na cidade do Rio de Janeiro, porque amarrado aos IPMs e a seus respectivos e sucessivos depoimentos.
23 - O 1.º Coator diz, conforme notícia publicada no Jornal de Brasil de 17 deste mês, que pretende ouvir o Paciente «até 500 vezes se for preciso - frisou o porta-voz», ousando, também, inverter completamente a situação de fato, atribuindo ao paciente, vítima indefesa, o estirado inumado dos interrogatórios!
24 - Não se alegue que os Coatores não estão sabendo o que fazem porque as vozes da imprensa e do Parlamento já se levantaram, indignadas, contra o suplício infligido ao Paciente, convindo aqui transcrever trechos da crônica do Sr. Rubem Braga intitulada «Os IPMs e o Sr. Juscelino», publicada no Diário de Notícias de 12 do corrente: «Sempre fui adversário político do Sr. Juscelino Kubitschek. Creio, entretanto, que ele merece o respeito devido a um homem que foi Presidente da República eleito pelo voto popular, e que passou o mandato a um adversário eleito também pelo voto popular. É em nome da democracia que ele merece ser respeitado. Se praticou crimes, que o julguem, que o condenem, que o prendam; mas façam isso com a seriedade, com a dignidade que será apenas um sinal de respeito à Nação, da qual ele foi Primeiro Magistrado eleito, e as próprias Forças Armadas de que ele foi Chefe Supremo.
Os Coronéis dos IPMs talvez pensem que estão diminuindo ou humilhando o Sr. Juscelino Kubitschek com essa longa chateação. Talvez não percebam que estão apenas aumentando a sua popularidade, atraindo para a sua figura a simpatia e a solidariedade não apenas de gente do povo como de todas as pessoas sérias que se respeitam e gostam de ser respeitadas»;
25 - Há, porém, uma circunstância mais grave e mais decisiva para ser pedida, como o está sendo agora, a proteção do Poder Judiciário para a pessoa do Paciente: é a de que o 1° Impetrante, revoltado com a ilegalidade e o abuso da Poder de que estava sendo objeto um antigo Presidente da República, resolveu dirigir-se, em telegrama urgente, ao Sr. Presidente da República, na esperança de que S. Exa., recebendo a denúncia da coação ilegal e abusiva, tomaria as providências que o caso requeria;
26 - Esforço inútil, porque o Impetrante, o que recolheu, foi um insulto, injusto, afrontoso e intolerável, conforme comprovam os documentos que a seguir se transcrevem, extraídos do Diário Carioca, de 26 do corrente, pág. 3:
«É a seguinte a íntegra do primeiro telegrama do advogado Sobral Pinto, enviado no princípio desta semana ao Presidente Castelo Branco:
“Receba os meus cumprimentos respeitosos. Formulo apelo patriótico, sereno e nobre ao Chefe das Forças Armadas da República Brasileira no sentido de fazer cessar, imediatamente, procedimento irregular dos Coronéis encarregados de IPMs que, a pretexto de fixar responsabilidades criminais inexistentes, praticam atos que estão transformando a vida do ex-Presidente da República Juscelino Kubitschek de Oliveira num verdadeiro inferno, por haver, como é de seu direito legítimo e constitucional, retornado à sua Pátria.
Atente V. Exa. para o fato de ter sido o Sr. Juscelino Kubitschek de Oliveira Presidente da República, tal como V. Exa. o é hoje, havendo, portanto, ostentado o título de Superior Hierárquico dos Coronéis que atualmente o incomodam. Atos desrespeitosos que atingem presentemente o Sr. Juscelino Kubitschek de Oliveira, antes de ferirem a sua pessoa, desprestigiam o cargo de Presidente da República por ele exercido. Não pode V. Exa. esquecer ter sido eleito pelo Congresso Nacional com a colaboração leal e sincera do Chefe incontestável do PSD, seu sucessor na chefia do Estado Brasileiro.
A roda da fortuna é caprichosa. Amanhã V.Exa. pode sofrer atentados e desrespeitos iguais aos que está sofrendo, neste instante, o criador de Brasília e o construtor da Belém-Brasília, esteios e portadores da civilização ao território interior, até então abandonado e esquecido. Denuncio a V.Exa. como Primeiro Magistrado da Nação, este procedimento intolerável: mal o ex-Presidente desce as escadas do avião, é imediatamente intimado por Coronéis, seus antigos subordinados, a comparecer, nesse dia, cinco horas depois, ante um desses Coronéis, para sofrer, durante horas, um interrogatório insignificante. Idêntica intimação recebe, nessa mesma ocasião, para comparecer às 8 horas do dia seguinte a outro interrogatório, que se prolonga por horas, também feito por outro Coronel, antigo subordinado seu. Na noite desse mesmo dia de retorno à Pátria, o ex-Presidente da República é novamente intimado para comparecer, na manhã de hoje, à presença deste segundo Coronel, a fim de sofrer novo interrogatório insignificante e improcedente.
Enquanto isso, o primeiro Coronel divulga na imprensa matutina nota declarando que vai interrogar durante dez dias seguidos o ex-Presidente da República, permitindo-se afirmar que o ex-Chefe de Estado pode ser preso a seu requerimento pelo Comandante do I Exército, o que representa atentado à Constituição Federal, afronta ao Supremo Tribunal Federal e desrespeito à prerrogativa do Poder Supremo da Nação que a pessoa do ex-Presidente possui mesmo quando fora da função. Estou certo de que V.Exa. informado destes graves acontecimentos que ora denuncio, porá termo a tais arbítrios, que ferem e desprestigiam a autoridade do Chefe Supremo das Forças Armadas da Nação. Queira aceitar as homenagens do seu compatriota esperançado. Sobral Pinto».
RESPOSTA
Esta foi a resposta do Ministro Luiz Vianna Filho, em nome do Presidente:
“Havendo recebido, ontem à noite, o seu telegrama referente ao tratamento que tem sido dado ao ex-Presidente Juscelino Kubitschek, incumbiu-me S. Exa. de esclarecer ao eminente advogado o seguinte:
O Sr. Juscelino Kubitschek, embora tendo exercido o comando supremo das Forças Armadas, nos termos da Constituição, não está incluído na hierarquia militar, acrescendo que o fato de ter os direitos políticos suspensos, conforme punição imposta de acordo com a legislação vigente, não lhe poderá outorgar regalias e privilégios. Nessas condições, a convocação para depor na medida considerada necessária é absolutamente legal, devendo processar-se de acordo com as normas a que estão sujeitos todos o brasileiros. Quanto aos caprichos da roda da fortuna, que todos sabem versátil, o Sr. Presidente da República além de submeter-se à sua proverbial fiscalização, pede sempre a Deus que o ajude a não roubar o povo nem trair a segurança da Nação. Atenciosas saudações. Luiz Vianna Filho”.
POVO COM JK
Retrucando, o advogado Sobral Pinto mandou, ontem, novo telegrama ao Presidente Castelo Branco:
“Recebi sua resposta ao meu telegrama, por intermédio do Ministro Luiz Vianna Filho, lamentando as insinuações deploráveis das últimas palavras dessa resposta. O povo que V. Exa. declara descabidamente ter sido roubado, vem dando, em praça pública, onde aplaude entusiasticamente o político proscrito, adequada resposta a tão injusta e revoltante agressão. Não reclamei privilégios para o ex-Presidente da República, mas apenas submissão, no caso dele, a costumes administrativos, normas de sensibilidade moral e regras irremovíveis de dignidade pessoal, adotadas e seguidas por todos os governos que não põem sua confiança na eficácia das metralhadoras e no orgulho de sua paixão facciosa.
A cassação dos direitos Políticos do ex-Presidente da República não pode apagar na patente de General de V. Exa. a assinatura do Sr. Juscelino Kubitschek de Oliveira, que nela está lançada, nem fazer desabar o Palácio do Planalto, por ele construído, de onde V. Exa. governa a Nação Brasileira. A prerrogativa de função garantida pelo Supremo Tribunal Federal em jurisprudência mansa e pacífica, pulveriza a argumentação sofistica de sua resposta, assinada pelo Ministro Luiz Vianna Filho.
Queira receber, Sr. Presidente, homenagens leais e sinceras de um cidadão que, diariamente, pede a Deus para que faça o Chefe da Nação governar com Justiça os cidadãos desta Pátria atribulada. Sobral Pinto”».
27 - Os fatos até aqui articulados demonstram, com precisão impressionante a significação indiscutível, que é propósito do Poder Executivo, através de seus agentes militares, obstar que o Paciente empregue e utilize, como qualquer outro habitante deste País, a sua liberdade normal, empregando, para tanto, interrogatórios torturantes e insuportáveis que acabarão, por sua freqüência, abalando gravemente a saúde do ex-Presidente da República;
28 - Resulta das circunstâncias e fatos incontestáveis narrados até aqui que o constrangimento imposto ao Paciente pelos Coatores, já mencionados, é, além de ilegal, também abusivo, conforme será demonstrado nos capítulos que se seguem;
IV
ILEGALIDADE DO CONSTRANGIMENTO IMPOSTO AO PACIENTE: DESRESPElTO À COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.
29 - No processo de reclamação n.° 673, pendente de decisão desse Supremo Tribunal Federal, sendo Relator o Sr. Ministro Luiz Gallotti, atualmente em licença, o 2.º Impetrante, na qualidade de advogado do Paciente, e antes da vinda desse da Europa, já mostrou, segundo pensa, que pelos crimes comuns, porventura praticados como Presidente da República, não pode o Paciente estar sujeito a investigações policiais civis ou militares, sem autorização ou requisição do Supremo Tribunal Federal, competente originariamente para o processo e julgamento de tais crimes, em virtude do disposto no art. 101, I, a, da Constituição Federal, e do princípio constitucional da conservação do Foro por prerrogativa de função;
30 - Valeu-se o 2.º Impetrante, na ocasião, do remédio da Reclamação, porque o Paciente ainda estava na Europa, não sofrendo, assim, o constrangimento ilegal e abusivo já focalizado no Capítulo III desta petição;
31 - Agora, porém, já caracterizado o constrangimento ilegal e abusivo à liberdade de locomoção do Paciente, é óbvio que o remédio do habeas-corpus passa a ser cabível e oportuno, sendo certo, também, que não se pode sequer pensar em litispendência entre a presente medida e qualquer outro remédio processual;
32 - Antes de passar à demonstração da ilegalidade dos IPMs instaurados contra o Paciente, e do abuso de poder com que têm submetido o mesmo Paciente, cumpre relembrar que na própria América do Norte, em cuja Constituição não existe texto semelhante ao do art. 101, I, a, da Constituição Brasileira, se tem entendido que Presidente e ex-Presidente da República não são obrigados a prestar depoimentos perante quaisquer autoridades policiais, nem mesmo até perante Comissões Parlamentares de Inquérito, sem obediência das regras inerentes ao próprio julgamento judiciário;
33 - É de necessidade, então reproduzir, neste momento, a carta que o ex-Presidente Harry S. Truman escreveu ao Deputado Harold H. Belde, publicada no New York Times de 13 de Dezembro de 1953, e que é a seguinte:
«Caro Senhor,
Recebi sua intimação, datada de 9 de Novembro de 1953, para comparecer à sua Comissão de Inquérito no dia 3 de Novembro, em Washington. A intimação não indica os assuntos sobre os quais deseja meu testemunho, mas presumo, pelo noticiário da imprensa, que V. S. deseja argüir-me sobre fatos que ocorreram durante o meu mandato como Presidente dos Estados Unidos.
A despeito do meu desejo pessoal de cooperar com sua Comissão de Inquéritos, sinto-me constrangido, pelo meu dever com o povo dos Estados Unidos, a declinar o acatamento de sua intimação.
Assim fazendo, estou cumprindo as determinações da Constituição dos Estados Unidos e sigo uma longa série de precedentes, a começar pelo próprio George Washington, em 1796. Desde essa data, os Presidentes Jefferson, Monroe, Jackson, Tyler Polk, Ellmore, Buchanan, Lincoln, Grant, Hayes, Cleveland, Theodore Roosevelt, Coolidge, Hoover e Franklin Roosevelt declinaram responder intimações ou pedidos de informação, de vários tipos, pelo Congresso.
A razão principal desta doutrina constitucional, claramente estabelecida e universalmente reconhecida, foi sucintamente apresentada por Charles Warren, uma das principais autoridades constitucionais norte-americanas, razão que é a seguinte:
“Nesta longa série de contestações do Poder Executivo, buscando manter a sua integridade constitucional, encontra-se uma legítima conclusão proveniente da nossa teoria de governo. Sob nossa Constituição, cada setor de governo é designado para ser um representante coordenado da vontade do povo. A defesa pelo Executivo, de seus poderes constitucionais, torna-se, em verdade, por isso, defesa dos direitos populares - defesa do poder conferido a ele pelo povo.
Foi nesse sentido que o Presidente Cleveland falou de seu dever para com o povo de não cercear qualquer dos poderes de sua função. Foi nesse sentido que o Presidente declarou que o povo tem direitos e prerrogativas na execução de seu mandato pelo Presidente, pelos quais todos os Presidentes têm o dever de zelar para que eles não sejam violados na sua pessoa, mas transmitidos a seus sucessores, não prejudicados pela adoção de um perigoso precedente. Ao manter seus direitos contra um Congresso que o ameaça, o Presidente defende não a si mesmo, mas ao Governo popular; ele não representa a sua pessoa, mas o povo.
O Presidente Jackson repeliu uma tentativa, pelo Congresso, de eliminar a separação dos poderes com estas palavras: “De minha parte repelirei quaisquer tentativas como esta, como uma invasão dos princípios de Justiça bem como dos da Constituição e considerarei meu dever sagrado para com o povo dos Estados Unidos resistir como eu o faria ao estabelecimento de uma inquisição espanhola”.
Recomendo a sua leitura à opinião de uma das Comissões do Congresso como qualquer das Casas do Congresso é independente do Executivo, e não podem exigir os arquivos de suas ações ou a ação de seus Chefes contra o seu consentimento, não mais do que o Poder do Executivo de exigir quaisquer das publicações ou arquivos da Câmara dos Deputados ou do Senado.
Deve ser óbvio a V.S. que se a doutrina da separação dos Poderes e a independência da Presidência para ter qualquer validade terá de ser igualmente aplicável a um Presidente após o término de seu mandato, que quaisquer de seus atos estariam sujeitos a inquéritos oficiais e possíveis distorções com propósitos políticos.
Se sua intenção, entretanto, é argüir-me sobre quaisquer atos como pessoa particular, seja antes ou após a minha Presidência, e sem relação com quaisquer atos como Presidente, comparecerei de bom grado. Atenciosamente, Harry S. Truman».
34 - Esta é uma lição adequada e oportuna, que o Supremo Tribunal Federal não poderá desprezar, porque se ajusta, de forma admirável, ao caso do Paciente que está sofrendo coação ilegal e abusiva, de autoridades militares, que fazem garbo de não levar em conta a sua condição de ex-Presidente da República e se permitem, por isto, fazer investigações em torno de atos e fatos indissoluvelmente ligados à sua condição de Chefe de Estado, quer no período que precedeu à sua posse, quer no em que exerceu o seu mandato;
35 - Com base na doutrina exposta na carta do ex-Presidente Harry S. Truman, o 2.º Impetrante demonstrou, na Reclamação n.º 673, a ilegalidade das possíveis intimações que iriam ser feitas ao Paciente, logo que ele retornasse ao território pátrio;
36 - Tal ilegalidade assume, pelas circunstâncias acima focalizadas na carta do ex-Presidente Harry S. Truman, e pelo que, resumidamente, vai ser argumentando em seguida, as características de coação ilegal;
37 - Com efeito, havendo deixado a Presidência da República em 31 de Janeiro de 1961, é evidente que já não pode mais ser considerado crime de responsabilidade qualquer fato criminoso que se pretenda atribuir ao Paciente, por ter sido praticado no exercício de mandato ou vinculado ao mesmo mandato;
38 - A razão desta afirmação é o preceito do art. 15 da Lei n.º 1.079, de 10 de Abril de 1950: «A denúncia só poderá ser recebida enquanto o denunciado não tiver, por qualquer motivo, deixado definitivamente o cargo»;
39 - Porque visa, somente a sanção específica do impeachment, prevista na Constituição Federal, art. 88, parágrafo único, e no art. 2.º da Lei n.º 1.079, de 10 de Abril de 1950, o crime de responsabilidade como tal se extingue com a saída do cargo, embora possa deixar, como resíduo, crime comum (argumento do art. 3.º da Lei n.º 1.079, de 10 de Abril de 1950);
40 - Tem-se, assim, que os IPMs em que se procura envolver o Paciente, só se pode estar investigando crime comum, quer esteja definido na lei penal comum ou na lei penal militar, tendo em vista a recente decisão desse Supremo Tribunal Federal no habeas-corpus n.º 42.108, de que foi Relator o Ministro Evandro Lins.
41 - Com efeito, decidiu, então unanimemente, o Supremo Tribunal Federal: «Não há que distinguir entre crime comum e crime militar, para definir a competência ratione personae e não ratione materiae, quando se trata de julgamento de titulares, que têm direito a foro especial, em decorrência da eminência da função que desempenham; a expressão crime comum é usada, na Constituição, em contraposição a crime de responsabilidade» (Diário da Justiça de 19 de Maio de 1956, pág. 1.122);
42 - Não se pode, realmente, pensar de modo contrário, diante dos termos do art. 23, §6.º, da Lei 1.079, de 10 de Abril de 1950, que exaustivamente só se refere às duas categorias únicas de crimes praticáveis por Presidente da República e outros titulares, crime com e crime de responsabilidade;
43 - Observe-se, porém, que embora compreendidos na chave geral crime comum, na dicotomia crime comum - crime de responsabilidade, os fatos atribuídos ao Paciente representariam ilícitos funcionais, isto é, atinentes ao comportamento que, como Presidente da República, teve para o que se diz que se passaria no ISEB, nos termos indigitados no Edital publicado no Jornal do Brasil de 10 de Agosto do corrente ano;
44 - A pobreza de terminologia jurídica, no assunto, é lamentável porque, ao lado da dicotomia exauriente, à vista da Lei n.º 1.079, de crime comum - crime de responsabilidade, também se fala, às vezes, em crime comum, em oposição a crime funcional, mas felizmente, a pobreza terminológica não se acompanha, geralmente, de pobreza de compensação, e, assim, nenhuma dúvida há quanto a se terem crimes praticados por titulares de altas funções públicas, como tais, como titulares, chamados de crimes funcionais e crimes praticados pelos indivíduos que exercem os cargos referidos, mas sem vinculação como o cargo, a não ser a pessoa humana que é o criminoso e exerce o cargo, chamados de crimes comuns stricto sensu;
45 - Em síntese, o Paciente, quanto aos IPMs, estará indicado como Presidente da República, e não como simples indivíduo, e teria, portanto, praticado crime comum funcional, e não crime comum stricto sensu;
46 - Indiciado em crime comum, que teria praticado no exercício da Presidência da República, isto é, quando construía Brasília e dava ao Brasil, em cinco anos, o desenvolvimento de 50, o Paciente só pode ser processado e julgado, originariamente, pelo Supremo Tribunal Federal, porque, embora não mais Presidente, ainda conserva o foro por prerrogativa de função, estabelecido no art. 110, I, a, da Constituição Federal, como é manso e pacífico na doutrina e na jurisprudência, o que dispensa Maiores esclarecimentos;
47 - Ora, se só o Supremo Tribunal Federal tem competência para processar e julgar o paciente pelos atos que praticou na Presidência da República, é evidente que não é admissível fique ele sujeito ao arbítrio e caprichos de Oficiais do Exército, outrora seus subordinados, para sofrer, como anteriormente já foi narrado, intimações sucessivas e interrogatórios prolongados, que constituem, em si e por si, manifesto desrespeito à mais alta função que existe no País: a Presidência da República;
48 - Repugna a qualquer sistema jurídico e político admitir que um Presidente da República ao deixar a sua função possa ser objeto de qualquer inquérito, presidido por uma autoridade civil ou militar subalterna, a fim de responder, perante tal autoridade, por atos que teria praticado no exercício da Primeira Magistratura da Nação, ou que estivessem vinculado a tal exercício;
49 - Consentir que uma tal anomalia venha a ser adotada e seguida sob a alegação de que a faculdade de processar não abrange a de inquirir, própria das investigações policiais, é, sem a menor dúvida, tornar inútil o privilégio de foro, porque implica em entregar o titular da mais alta magistratura do País à perseguição de funcionários subalternos, civis ou militares, no dia em que o titular dessa função vier a deixar o seu cargo;
50 - Provada, pela forma supra, a ilegalidade da coação que vem sofrendo o Paciente, urge enfrentar o último ponto;
V
ABUSO DE PODER
51 - O texto claro do §23 do art. 141 da Constituição Federal preceitua que é cabível o habeas-corpus contra coação originada de ilegalidade ou de abuso de poder;
52 - Demonstrada, anteriormente a coação por ilegalidade, é mister, provar agora, sucintamente, que ela ocorre por abuso de poder;
53 - O Professor Heleno Cláudio Fragoso, em petição de habeas-corpus apresentada a esse Supremo Tribunal Federal em favor de Jorge Wallace Simonsen, e que tomou o n.º 42.697, teve a oportunidade de sustentar: «A norma constitucional determina concessão de habeas-corpus não só em casos de ilegalidade, como também em casos de abuso de poder, sendo, pois, mais ampla do que a definição da lei processual para coação ilegal»;
54 - Entra, mais abaixo, o ilustre Professor a esclarecer, com lucidez, que abuso de poder é «desvio dos deveres do próprio ofício, na prática arbitrária de um ato legal. Há abuso de poder quando o funcionário se serve ilegitimamente de faculdades ou de meios de que legalmente pode dispor. O abuso de poder é, em suma, o mau uso de poderes realmente atribuídos ao funcionário»;
55 - Por seu turno, Pontes de Miranda adverte: «Abuso de poder é o exercício irregular do poder. Usurpa poder quem sem o ter, procede como se o tivesse. A falsa autoridade usurpa-o; a autoridade incompetente, que exerce poder que compete a outrem, usurpa; a autoridade competente não usurpa. Se de certo modo exorbita, abusa do poder» (Comentários à Constituição de 1946 - Tomo V - 4 - pág. 247);
56 - Os Coatores indicados nesta petição, além das ilegalidades praticadas, incidem em abuso de poder porque, não satisfeitos de chamarem para depor quem não está sujeito à sua jurisdição, como anteriormente se provou, exorbitam de maneira revoltante, da faculdade de fazer o Paciente comparecer à sua presença e de o submeterem a interrogatórios exaustivos, vexatórios e torturantes;
57 - O comportamento dos Coatores em face do Paciente revela o seu propósito, não de descobrir a verdade nem de investigar a realidade, mas de amesquinhar e humilhar a pessoa do Paciente, como que a lhe fazer sentir que a circunstância de ter sido Presidente da República, longe de provocar respeito, é causa de merecer desconsideração e hostilidade;
58 - Não há quem não perceba que estas repetidas intimações, que não acabam nunca, e esses interrogatórios que se alongam indefinidamente, tudo em estabelecimentos militares, rigidamente policiados, estando o Paciente sozinho em face dos seus interrogadores frios e implacáveis, representam um intolerável abuso de poder, sobretudo quando o interrogado é um ex-Presidente da República e o interrogatório se exerce sobre atos de sua Presidência!
59 - Cabe ao Supremo Tribunal Federal por cobro a tal comportamento, que deslustra a civilização brasileira e desprestigia o cargo de Presidente da República, como lesão irremediável do princípio universal da majestade do Poder;
60 - Ante todo o exposto, apresentam os Impetrantes as seguintes CONCLUSÕES:
a) Como remédio à ilegalidade devem ser avocadas pelo Supremo Tribunal Federal as peças, porventura existentes, que possam servir de base para a instauração de um inquérito policial sob a fiscalização de um Ministro-Relator, contra o ex-Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira;
b) A cessação de quaisquer intimações em interrogatórios do Paciente, ex-Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira, por parte de quaisquer autoridades civis ou militares, sem prévia autorização do Supremo Tribunal Federal, único competente para investigar, processar e julgar, por atos de ofício, quem exerceu a Presidência da República;
c) Conceder o Relator a medida liminar de ordenar aos Coatores a suspensão de quaisquer intimações e interrogatórios do Paciente, ex-Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira, até que o Supremo Tribunal Federal, em sessão plena, conheça e conceda a ordem de habeas-corpus ora impetrada. As intimações e os interrogatórios que sofreu até agora seriam mais do que suficientes para o exato conhecimento dos fatos e o seu adequado esclarecimento, se tais fossem os objetivos dos Coatores, porque não há exemplo, na história do País, de que tenha sido alguém submetido, indefinidamente, a tantos e tão prolongados interrogatórios, como o anúncio de que tais tormentos não terão fim, uma vez que estão na dependência do arbítrio e do capricho dos Coatores.
Assim, os Impetrantes vêm requer a V.Exa. que, distribuída a presente e pedidas as informações aos Coatores, se for o caso, seja concedida ao paciente, Dr. Juscelino Kubitschek de Oliveira, ex-Presidente da República, a presente ordem de habeas-corpus para fazer cessar a coação de que está sendo vítima, por ilegalidade e abuso de poder, tudo na forma aqui exposta e requerida. Procedendo desta maneira, terá o Supremo Tribunal Federal realizado, mais uma vez, obra de intrépida, imparcial e serena Justiça.
Rio de Janeiro, 19 de Outubro de 1965.
Heráclito Fontoura Sobral Pinto.
Cândido de Oliveira Neto.
(Decisão: Julgou-se prejudicado o pedido.)
[12] RECURSO ESPECIAL N.º 46.424-2 - RO - 6.ª TURMA
Relator: O Exm.º Sr. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro
Recorrente: Elpídio Alves de Souza
Recorrido: Ministério Público do Estado de Rondônia
Advogada: Dr.ª Alice Reigota
EMENTA
RESP - PENAL - ESTUPRO - PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA - O Direito Penal moderno é direito Penal da culpa. Não se prescinde do elemento subjetivo. Intoleráveis a responsabilidade objetiva e a responsabilidade pelo fato de outrem. A sanção, medida político-jurídica de resposta ao delinqüente, deve ajustar-se à conduta delituosa. Conduta é fenômeno ocorrente no plano da experiência. É fato. Fato não se presume. Existe, ou não existe. O Direito Penal da culpa é inconciliável com presunções de fato. Que se recrudesça a sanção quando a vítima é menor, ou deficiente mental, tudo bem. Corolário do imperativo da Justiça. Não se pode, entretanto, punir alguém por crime não cometido. O princípio da legalidade fornece a forma e o princípio da personalidade (sentido atual da doutrina) a substância da conduta delituosa. Inconstitucionalidade de qualquer lei penal que despreza a responsabilidade subjetiva. Na hipótese dos autos, entretanto, o acórdão fundamentou a condenação na conduta do réu, que teria se valido de grave ameaça para conseguir o seu intento». Julgado no dia 14 de Junho de 1994.
[13] HABEAS-CORPUS N.º 73.662-9/MG - 2.ª TURMA
Relator: O Exm.º Sr. Min. Marco Aurélio de Mello.
Paciente: Márcio de Carvalho.
Coator: Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais.
VOTO
Senhor Ministro Marco Aurélio: «Inicialmente, ressalvo entendimento pessoal sobre a incompetência para julgar este habeas-corpus, cuja definição, continuo convencido, ocorre consideradas as pessoas envolvidas na hipótese sob exame. O paciente não goza de prerrogativa de foro. Assim, cabe perquirir a situação daqueles que integram o órgão apontado como coator - o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Os desembargadores estão submetidos à jurisdição direta, nos crimes comuns e de responsabilidade, do Superior Tribunal de Justiça - alínea “a” do inciso I do artigo 105 da Constituição Federal, o que atrai a pertinência do disposto na alínea “c” do referido inciso, segundo a qual compete àquela Corte julgar os habeas-corpus quando o coator ou o paciente for qualquer das pessoas mencionadas na alínea “a”, ou quando o coator for Ministro de Estado, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral. Todavia, até aqui este não é o entendimento prevalente. O Plenário, ao concluir o julgamento da reclamação n.° 314/DF, em que funcionou como relator o Ministro Moreira Alves, assentou que compete ao Supremo Tribunal Federal julgar todo e qualquer habeas-corpus, desde que não seja substitutivo de recurso ordinário, interposto contra ato de tribunal, ainda que não guarde a qualificação de superior. Na oportunidade, fiquei vencido na companhia honrosa dos Ministros Ilmar Galvão, Carlos Velloso e Celso de Mello, tendo findado o julgamento em 30 de Novembro de 1993. Conheço do pedido ora formulado. O tema foi melhor desenvolvido quando verificado o debate junto ao Pleno. Confira-se com o que publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais n.° 9, páginas 140 a 146.
No mérito, tem-se que, nos crimes de estupro, o depoimento da vítima exsurge com inegável importância. No caso dos autos, ouvida em Juízo, esclareceu que vinha saindo de motocicleta com o paciente, sempre indo a lugar deserto para troca de beijos e carícias. Apontou que o mesmo já fizera com um dos amigos do Paciente, entre outros rapazes. A seguir noticiou que o paciente pedira gentilmente para que mantivesse consigo conjunção carnal, e que se recusara, de início, mas cedera em face das carícias. Retornando à residência, pedira ao paciente que a deixasse longe de casa, visando fugir à fiscalização do genitor, que, por falta de sorte, viu-a descer da motocicleta.
Ao que tudo indica, a ação penal em que foi condenado o paciente surgiu única e exclusivamente da reação do pai da vítima. Esta, respondendo às perguntas endereçadas pelo Estado-acusador, foi categórica em afirmar que: (...) já ficou com outro rapaz de nome V.; que se relacionou sexualmente com o réu por três vezes e que na última foi que seu pai pegou; que a depoente manteve relações sexuais com o réu na primeira vez que o conheceu; que tal relação não foi forçada em hipótese alguma; que assim agiu porque pintou vontade; que o relacionamento da depoente com o pai não é muito bom e que o pai a pressionou para comparecer perante a autoridade; que transou com V. num sítio abandonado perto da fábrica” (folhas 48 e 49).
A seguir, em face de intervenção feita pela assistência da acusação, respondeu a vítima: “(...) tinha muito medo do pai saber que ela estivesse se encontrando com o réu sexualmente; que não houve violência em momento algum, que a depoente não tem medo de pegar AIDS nem de engravidar porque se tiver um filho o criará” (folha 49).
Soma-se ao depoimento da própria vítima e da testemunha H.A.S., consoante o qual: “(...) tinha conhecimento de que M. saía junto à menor M.A.N; que igualmente ficou sabendo pelo próprio acusado que ambos mantiveram relações sexuais; que a vítima aparentava ter uns 15 ou 16 anos; é do conhecimento do declarante que ela saía com outros; que chegou a ver a menor sair à noite com outras pessoas de moto; que a menor anda muito pela noite ficando até a madrugada na rua e o depoente a considera uma prostitutazinha” (folha 51).
Diante de tais colocações, forçoso é concluir que não se verificou o tipo do artigo 213 do Código Penal, no que preceitua como estupro o ato de “constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”. A pouca idade da vítima não é de molde a afastar o que confessou em Juízo, ou seja, haver mantido relações com o paciente por livre e espontânea vontade. O quadro revela-se realmente estarrecedor, porquanto se contata que menor, contando apenas com doze anos, levava vida promíscua, tudo conduzido à procedência do que articulado pela defesa sobre a aparência de idade superior aos citados doze anos. A presunção de violência prevista no artigo 224 do Código Penal cede à realidade. Até porque não há como deixar de reconhecer a modificação de costumes havida, de maneira assustadoramente vertiginosa, nas últimas décadas, mormente na atual quadra. Os meios de comunicação de um modo geral e, particularmente a televisão, são responsáveis pela divulgação maciça de informações, não as selecionando sequer de acordo com medianos e saudáveis critérios que pudessem atender às menores exigências de uma sociedade marcada pelas dessemelhanças. Assim é que, sendo irrestrito o acesso à mídia, não se mostra incomum reparar-se a precocidade com que as crianças de hoje lidam, sem embaraços quaisquer, com assuntos concernentes à sexualidade, tudo de uma forma espontânea, quase natural. Tanto não se diria nos idos dos anos 40, época em que exsurgia, glorioso e como símbolo da modernidade e liberalismo, o nosso vetusto e ainda vigente Código Penal. Àquela altura, uma pessoa que contasse doze anos de idade era de fato considerada criança e, como tal, indefesa e despreparada para os sustos da vida.
Ora, passados mais de cinqüenta anos - e que anos: a meu ver, correspondem, na história da humanidade, a algumas dezenas de séculos bem vividos - não se há de igualar, por absolutamente inconcebível, as duas situações. Nos nossos dias não há crianças, mas moças de doze anos. Precocemente amadurecidas, a maioria delas já conta com discernimento bastante para reagir ante eventuais adversidades, ainda que não possuam escala de valores definida a ponto de vislumbrarem toda a sorte de conseqüências que lhes pode advir. Tal lucidez é que de fato só virá com o tempo, ainda que o massacre da massificação da notícia, imposto por uma mídia que se pretende onisciente e muitas vezes sabe-se irresponsável diante do papel social que lhe cumpre, leve à precipitação de acontecimentos que são bem-vindos como o tempo, esse amigo inseparável da sabedoria.
Portanto, é de se ver que já não socorre à sociedade os rigores de um Código ultrapassado, anacrônico e, em algumas passagens, até descabido, porque não acompanhou a verdadeira revolução comportamental assistida pelos hoje mais idosos. Com certeza, o conceito de liberdade é tão discrepante daquele de outrora que só seria comparado aos que norteavam antigamente a noção de libertinagem, anarquia, cinismo e desfaçatez.
Ao fim, cabe uma pergunta, de tão óbvia, transparece à primeira vista como que desnecessária, conquanto ainda não devidamente respondida: a sociedade envelhece; as leis não?
Ora, enrijecida a legislação - que, ao invés de obnubilar a evolução dos costumes, deveria acompanhá-la dessa forma protegendo-a - cabe ao intérprete da lei o papel de arrefecer tanta austeridade, flexibilizando, sob o ângulo literal, o texto normativo, tornando-o, destarte, adequado e oportuno, sem o que o argumento da segurança transmuda-se em sofisma e servirá, ao reverso, ao despotismo inexorável dos arquiconservadores de plantão, nunca a uma sociedade que se quer global, ágil e avançada - tecnológica, social e espiritualmente.
De qualquer forma, o núcleo do tipo é o constrangimento e à medida em que a vítima deixou patenteado haver mantido relações sexuais espontaneamente, não se tem, mesmo a mercê da potencialização da idade, como o concluir, na espécie, pela caracterização. A presunção não é absoluta, cedendo as peculiaridades do caso como são as já apontadas, ou seja, o fato de a vítima aparentar mais idade, levar vida dissoluta, saindo altas horas da noite e mantendo relações sexuais com outros rapazes como reconhecido no depoimento e era de conhecimento público.
Na doutrina encontra-se corroboração a esta tese. Consoante Magalhães Noronha, a presunção inscrita na letra “a” do artigo 224 do Código Penal é relativa, podendo ser excluída pela suposição equivocada do agente de que a vítima tem idade superior a quatorze anos: “Se o agente está convicto, se crê sinceramente que a vítima é maior de quatorze anos, não ocorre a presunção. Não existe crime, porque age de boa-fé” (Direito Penal, 4.ª ed., vol. 3/221).
Também Heleno Cláudio Fragoso, (em Lições de Direito Penal) afirma que a presunção em comento não é absoluta, “pois o erro plenamente justificado sobre a idade da vítima exclui a aplicação de tal presunção”.
Por tais razões, concedo a ordem para absolver o Paciente.
É o meu voto.
Marco Aurélio de Mello.
Ministro do STF».
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